Decisão judicial determina que terreno doado irregularmente retorne a posse do município | Foto: Alexandre Douvan

Decisão judicial determina que terreno doado irregularmente retorne a posse do município | Foto: Alexandre Douvan

O que em 2004 parecia ser apenas a doação de um terreno da prefeitura, acabou por se tornar um caso de justiça. Hoje a área pertence ao Clube Colorado, uma instituição privada com associados. Antes da doação, a Associação de Moradores do Jardim Dom Bosco pleiteava a área junto à prefeitura para efetivar a designação social do terreno, mas isso passou longe de se concretizar.

 Na época da criação do Jardim Dom Bosco, havia duas áreas destinadas a fins sociais. Em uma delas a gestão municipal construiu a Escola Municipal Profª Zilá Bernadete Bach, e o outro lote permaneceu sem nada construído.

O então prefeito de Ponta Grossa, Pedro Wosgrau Filho, assinou dois Decretos de Lei 7.897/2004 e 7.920/2004, que oficializaram a doação de terreno com área total de 13.635,40 metros quadrados no Jardim Dom Bosco para a Associação Colorado (AC), organização privada. A doação dos terrenos teve início no mandato do antecessor, Péricles de Holleben Mello. Os membros da Associação de Moradores relatam que à época da doação houve acordo de que a AC disponibilizaria a área para uso público – o que fundamentou os decretos de doação – mas isso nunca ocorreu.

Marcelo Machado, um dos mais antigos moradores do bairro, lembra que assim que o clube se instalou na região, cercou o terreno e a entrada passou a ser permitida somente aos associados. Machado foi presidente da Associação de Moradores do bairro e, em 2015, entrou com um processo junto ao Ministério Público do Paraná exigindo a anulação dos decretos municipais que autorizaram a doação do terreno.

Adriana Soares, presidente da Associação de Moradores na época da doação do terreno, em 2004, ressalta a burocracia que teve de enfrentar quando buscava a regularização da área para atividades sociais, como a criação de “Grupo de mães”, iniciação esportiva dos jovens e a implementação de cursos de formação técnica, que demandam espaço adequado. Soares afirma que “quando se tem um projeto bom, coletivo, é muito difícil, mas quando se visa fins particulares, acontece muito rápido”, frisa.

Passados 14 anos da doação, em 2017, a juíza da 2ª Vara da Fazenda Pública de Ponta Grossa, Luciana Virmond, alegou inconstitucionalidade das leis que autorizaram a doação e determinou que o terreno volte à posse do Município sem qualquer prejuízo aos cofres públicos, mas a procuradoria municipal recorreu da decisão, ou seja, não aceitou receber o terreno de volta.

O processo foi para o Tribunal de Justiça do Paraná, onde, em agosto de 2018, os desembargadores mantiveram a decisão da primeira instância. Mesmo assim, em agosto de 2019, o clube privado continua instalado no local pois a procuradoria do Município entrou com nova ação pedindo a revisão do processo.

Entramos em contato com o promotor responsável pelo caso, Márcio Pinheiro Dantas Motta, que nos respondeu por meio de sua assessoria que, se mantida a sentença, ocorrerá a anulação das doações e os terrenos passarão a ser novamente do Município “para que seja dada a finalidade devida aos imóveis”. Em caso da sentença vir a ser anulada, o terreno continuará sendo da entidade privada.

Histórico de ações sociais da Associação de Moradores

Promover uma formação cidadã. Essa é a visão que os moradores Silvana Soares e Marcelo Machado compartilham sobre a potencialidade do uso da área social pelo Município. É a gestão pública que precisa deliberar sobre o uso que deve ser dado ao terreno e os moradores citados afirmam que querem “dialogar com o prefeito para que se possibilite o desenvolvimento de atividades que colaborem na formação dos jovens”.

Desde 2002, os moradores do bairro tinham planos de pleitear junto à Prefeitura a construção de um barracão para realizar atividades sociais e recreativas, mas os gestores do Município à época não agilizaram esse movimento.

Marcelo Machado afirma que “se veem muitos jovens ‘sem rumo’, abandonando a escola, indo para o crime ou acabando na prostituição”. O Dom Bosco é distante 8,8 km do Centro da cidade, o que acaba desestimulando os moradores a participar das atividades culturais ou profissionalizantes, pois o deslocamento tem certo custo. Hoje, o Jardim Dom Bosco conta com 4.700 moradores, e o que os líderes da comunidade pleiteiam são as bases para que lazer e formação cidadã existam dentro do próprio bairro.

O contraste entre uma rua central asfaltada e larga com outras, paralelas, estreitas e sem pavimentação, salta aos olhos. Adriana Soares nos recebeu em sua casa, que fica aos fundos do ambiente onde guarda os materiais recicláveis que comercializa. Lembra do “Coral das Crianças”, iniciativa que propunha ensinar canto, mas que acabou arrefecendo por falta de apoio. Conta sobre o “Clube de Mães e Meninas”, que nunca chegou a sair do papel por falta de espaço adequado.

Marcelo Almeida é morador do bairro e estudante de Direito em uma instituição privada de Ponta Grossa. Sonha que um dia o bairro possa ter “uma pista de atletismo, um centro para o ensino da informática entre outras coisas”. Para ele, trata-se de uma maneira de promover melhor formação às futuras gerações. “Gostaria muito que as crianças de hoje pudessem ter acesso a todas as oportunidades que eu não tive na idade delas”, explica Almeida.

Em 2002, Almeida era mais uma das crianças que jogava futebol no terreno que hoje pertence à AC. Desde aquela época as atividades citadas já faziam parte dos planos da Associação de Moradores, e a concretização parece estar longe de acontecer uma vez que a determinação judicial é para a reintegração de posse ao município, porém a atual gestão se recusa a cumprir.

Ministério Público elenca irregularidades

Quando iniciada a investigação, servidores do Ministério Público (MP) foram até a Associação Colorado para verificar a procedência da denúncia feita por Marcelo Machado. Já haviam se passado 15 anos da doação da área e o local hoje conta com um campo de futebol, uma construção em alvenaria contendo cozinha, banheiro e uma churrasqueira que podem ser vistos da rua. Há também uma casa destinada aos caseiros e o que o MP identificou como “uma edificação em que será construído um salão social”.

O relatório do MP traz contradições entre discurso e ação da Associação Colorado. O atual presidente da entidade, Sidnei Gonçalves dos Santos, afirmou ao MP que o terreno é cedido “aos sábados de manhã para o desenvolvimento de um projeto da Igreja Assembleia de Deus”. Entretanto, a investigação do Ministério Público não encontrou qualquer indício de que a atividade se desenvolva no local. No mesmo depoimento afirmou que “quando solicitada a doação da área não tinham a intenção de ser uma instituição filantrópica” e diz que jamais foi procurado pela Associação de Moradores para uso das dependências da AC.

Outra afirmação do presidente da AC é que se desenvolve o projeto “escolinha de futebol” no Ginásio de Esportes do Bairro Santa Paula. Em contato com o MP, fomos informados de que tais imóveis não poderiam ter sido desafetados e doados a entidades privadas, por mais que fosse com o objetivo de se desenvolverem atividades sociais. O entendimento do Ministério Público é baseado no fato desses terrenos pertencerem a um loteamento que, quando autorizada a instalação dele foram destinados à instalação de equipamentos públicos, ou seja, qualquer atividade que viesse a ser desenvolvida deveria estar sob o respaldo de algum órgão público.

Nos fatos levantados no processo, o procurador Márcio Pinheiro Dantas Motta aponta que “não importa que a associação beneficiária tenha como objetivo atender os interesses dos moradores, pois a área jamais poderia pertencer a uma única entidade, eis que ela só foi doada ao Município [pela União] com a finalidade de servir como equipamento público”. Isso significa que todas as atividades que viessem a ser realizadas no terreno deveriam ser de responsabilidade do Município.

Péricles de Mello defende ações inexistentes da Associação Colorado

Quando assinou os dois decretos de doação dos terrenos, o então prefeito de Ponta Grossa, Pedro Wosgrau Filho, ratificou a afirmação de seu antecessor, Péricles de Holleben Mello (mensagem nº 238/2004, de 20/05/2004) de que: “A Associação Colorado Ponta Grossa é uma sociedade civil de direito privado, sem fins lucrativos, que tem por objetivos, dentre outros, a promoção e o desenvolvimento da ação comunitária, mantendo estrita colaboração e entrosamento com o setor dos órgãos públicos, objetivando o desenvolvimento de atividades sociais, culturais, esportivas, ambientais, pedagógicas, educacionais e profissionais, além de participar da promoção do combate à fome, ao analfabetismo e a degradação ambiental”.

Entretanto, verificamos que a Associação Colorado nunca teve cadastro de qualquer atividade social junto ao município de Ponta Grossa. Procurado pela reportagem, Péricles disse por telefone que não tem conhecimento do andamento do processo e, portanto, não tem condições de comentar. O ex-prefeito foi apenas citado no processo. Procurado pela reportagem, Wosgrau afirmou por telefone que não se recorda dos detalhes da doação, que ocorreu há mais de 10 anos e também afirma não lembrar das alegações do processo.

A procuradoria do município se posicionou contra a doação

A procuradoria do Município observou que a Associação Colorado não possui ligação com qualquer Secretaria Municipal, seja na elaboração ou na execução de projetos. E em 2004, observou que os moradores poderiam pleitear a área através do Ministério Público, portanto o correto seria que a Prefeitura mantivesse os terrenos sob posse do Município para assegurar a finalidade pública.

O então prefeito Pedro Wosgrau Filho declarou que o parecer da Procuradoria do Município não tinha sustentação e, sem dar mais detalhes sobre isso, determinou o prosseguimento do processo de doação. Pelo parecer formal da Procuradoria, o MP considera que Wosgrau tinha consciência da inconstitucionalidade da doação e mesmo assim prosseguiu. Por conta disso, o ex-prefeito foi acusado e condenado por improbidade administrativa. Wosgrau e a Prefeitura recorreram da decisão.

Não fomos recebidos na Associação Colorado

Fomos até a sede da AC, mas o caseiro estava assistindo a um jogo de futebol na televisão. Batemos palmas, ele nos viu, mas não saiu da casa para nos atender. Encontramos um endereço de e-mail na página da Associação Colorado na rede social Facebook, porém o destinatário é inexistente.

 Ficha Técnica:

Produção: Alexandre Douvan e Luiza Sampaio
Supervisão: Professoras Angela Aguiar, Fernanda Cavassana e Helena Maximo
Técnico Multimídia: Jairo Souza
Edição: Thailan de Pauli Jaros