“No laboratório em que eu trabalho com mais três professores pelo menos, a maior parte do mobiliário fomos nós que custeamos a confecção”, comenta professora da UEPG, Katia Paludo |Foto: Alexandre Douvan

Cursar Medicina é o sonho de muitas pessoas. No Bloco M do Campus Uvaranas da UEPG, esse sonho se concretiza, mas a duras penas. Sem a estrutura adequada, com corte de bolsas de pesquisa federais (CAPES e CNPq) em virtude dos contingenciamentos ocorridos nos governos Temer e Bolsonaro, o ensino acaba defasado, o desenvolvimento de pesquisas é prejudicado e o retorno social dos investimentos acaba sendo reduzido.

 A maioria dos microscópios utilizados pelos estudantes dos cursos de Ciências Biológicas e da Saúde da UEPG foram adquiridos pela instituição em 1977, bancadas estão com rachaduras de ponta a ponta e correm o risco de ceder, faltam produtos químicos para atividades laboratoriais e a maioria dos reagentes utilizados nos estudos estão vencidos. É isso o que encontra quem decidir visitar os cursos de Biologia e Medicina da UEPG.

 

Laboratórios sem equipamentos
Katia Sabrina Paludo, professora do Departamento de Biologia Estrutural, Molecular e Genética e membra do colegiado do curso de Medicina, expõe as dificuldades enfrentadas pela falta de recursos e materiais nos cursos de ciências biológicas. Ela afirma que chega a pensar em desistir de fazer pesquisa devido aos enormes percalços que enfrenta diariamente.

“Muito do que a gente gosta de fazer e faz é porque realmente gostamos muito” diz a professora, enquanto nos mostra as condições estruturais do Laboratório 75 do Bloco M. Há 12 microscópios sobre uma bancada de concreto e todos eles apresentam algum tipo de defeito. A própria bancada tem uma rachadura de ponta a ponta e está formando uma parábola. É um laboratório onde são ministradas aulas de Histologia, que é uma disciplina de todos os cursos da área da Saúde, como Medicina, Farmácia, Enfermagem e os três cursos de Biologia. “É um laboratório usado exaustivamente e nós trabalhamos com pelo menos um terço dos microscópios que são do ano de 1977. Eles ainda estão resistindo, mas já passaram do prazo de uso”, relata Paludo.

Como se não bastasse os equipamentos estarem longe das condições ideais de uso, somente podem ser utilizados se os professores tirarem dinheiro do próprio bolso para isso. Paludo conta que “os microscópios também são bancados com recursos nossos [dos professores]”, pois os equipamentos demandam manutenção e insumos para o funcionamento. “Também temos lâminas que vieram de projetos de pesquisa de professores-pesquisadores, mas, nas suas próprias pesquisas, também têm que desembolsar dinheiro e esse é um dos nossos problemas”.

O desabafo da professora Katia Paludo é acompanhado por outros professores. Michele Dietrich, que é chefe do Departamento de Biogenética da UEPG, aponta que a falta de reagentes faz com que os próprios estudantes de pós-graduação precisem comprar materiais para desenvolver suas pesquisas. Atualmente uma bolsa de mestrado tem o valor de R$ 1.200 ao mês. "A maioria dos reagentes que a gente usa custa esse valor [R$ 1.200] ou até mais", afirma Dietrich.

Dietrich também reclama da falta de apoio da universidade, que "disponibiliza um pouco para as aulas, mas não para a pesquisa, e nós compramos muitos materiais que faltam do próprio bolso, por exemplo, o álcool 70, que utilizamos para esterilização e a limpeza dos materiais, das bancadas, porque tudo precisa estar muito bem limpo e esterilizado".

 

Professores que pagam para poder trabalhar
“Nós temos uma série de limitações.” É assim que a professora Paludo começa a resposta quando questionada sobre como desenvolve suas pesquisas em um ambiente cuja estrutura deixa a desejar. E conclui: “no laboratório em que eu trabalho com mais três professores pelo menos, a maior parte do mobiliário fomos nós que custeamos a confecção”.

Sem recursos, mas também sem querer deixar as pesquisas pararem, os professores do Setor de Saúde tiveram que apelar para “vaquinhas” feitas por internet como solução para comprar geladeiras e um freezer, que são indispensáveis no caso de pesquisas em que se trabalha com organismos que precisam estar constantemente na temperatura correta. Do contrário, toda a pesquisa pode ser prejudicada. “Temos também um micro-ondas que foi doado pela minha mãe e assim a gente vai organizando e trabalhando, realizando a pesquisa”, conta Paludo.

Mesmo os professores tendo que despender do próprio dinheiro para equipar um laboratório, ainda faltam produtos utilizados no cotidiano das aulas e da pesquisa. Produtos consumíveis como reagentes e outros materiais são, na maior parte, custeados pelos próprios professores. Um caso que ilustra o quadro é o de uma estufa que precisa de abastecimento de CO2 por meio de um cilindro. O aluguel do cilindro e a carga são pagos pelos professores que o utilizam.

A professora Dietrich conta que, para a pesquisa, só se consegue dinheiro através da pós-graduação, que não chega a ser suficiente para garantir cada pesquisa individual. Mas lembra que os estudantes da graduação que desenvolvem trabalhos de Iniciação Científica (IC) também têm projetos de pesquisa, mas que a verba é muito baixa. A pesquisa de IC "terá gastos de materiais e a universidade não vai custear. O que nós conseguimos são bolsas de R$ 400, mas não dinheiro para manutenção da pesquisa que o aluno estará desenvolvendo", explica Dietrich.

 

Ensino e Pesquisa sem o mínimo de recursos
No dia 11 de setembro, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná emitiu um acórdão no qual determina que as Secretarias de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti) e da Fazenda (Sefa) apliquem a verba que deixou de ser executada em ciência e tecnologia no estado entre os anos de 2012 e 2015.

A Constituição do Paraná estabelece no art. 205 que o estado deve investir anualmente, no mínimo, 2% do total da receita no desenvolvimento de pesquisa e tecnologia. O processo que resultou no acórdão foi instaurado pelos conselheiros do Tribunal de Contas nas prestações de contas anuais (PCA) de 2014 e de 2015 do Governo do Estado do Paraná. Em 2014, foram destinados para a pasta de Ciência e Tecnologia R$ 304,8 milhões, o que representa 1,83% da base de cálculo. Em 2015 o percentual foi ainda menor, de 1,67% da receita tributária estadual, que em valores absolutos foi de R$ 312 milhões. Naquele período, o Secretário de Ciência e Tecnologia do Paraná era o ex-reitor da UEPG, João Carlos Gomes.

Quando nos atemos apenas às cifras, o montante de recursos destinados parece enorme, mas, na prática, não é bem assim. O Paraná é o estado com o maior número de universidades estaduais do Brasil, com sete instituições, nas quais estão matriculados atualmente cerca de 100 mil estudantes divididos entre os 377 cursos de graduação, 304 cursos de especialização, 186 mestrados e 83 doutorados, de acordo com dados da Associação Paranaense das Instituições de Ensino Superior Público (APIESP). A verba destinada à Ciência e Tecnologia é dividida entre as instituições, mas isso não significa que seja integralmente destinada às pesquisas. É com esse dinheiro que são comprados os materiais de consumo, é realizada a manutenção de equipamentos e são pagas as despesas cotidianas.

 

Faltam bolsas para pesquisadores e pesquisas não são aceitas no exterior
Ana Caroline Silva é mestranda no programa de pós-graduação em Ciências Biomédicas da UEPG. Estuda biologia celular e passa nove horas por dia no laboratório, das 8h da manhã até às 17h. Para a pesquisadora, uma bolsa de pós-graduação seria o ideal para que pudesse continuar o desenvolvimento do trabalho sem precisar recorrer a outros meios.

"A bolsa ajudaria a desenvolver meu projeto e mantê-lo na linha original. Eu tive que mudar a pesquisa e adaptá-la devido a não ter o auxílio da bolsa e nem a universidade ter verbas suficientes para comprar os materiais", afirma.

Silva conta que, no princípio, seu projeto visava testar linhagens celulares específicas, que logo se notou não existirem na UEPG. Por ter que comprar os insumos necessários sem verba da instituição, teve que adaptar toda a pesquisa.

Não é apenas Silva que se encontra nessa situação. Paludo aponta que seus alunos estão sempre correndo o risco de perder a bolsa. “A gente consegue produzir ciência com grandes limitações. Nós temos as agências de fomento, junto a quem nós poderíamos inscrever projetos para conseguir financiamentos, com um número cada vez menor de editais, para conseguir participar e sair um pouco dessa situação. Temos nossos alunos que estão a todo tempo correndo risco de perder bolsa”, desabafa.
Dietrich conta que começou a sentir a falta de recursos de 2014 para 2015, quando o número de editais começou a diminuir e a verba de fomento à pesquisa foi rareando. "Esse cenário da universidade também é um cenário que vem do país, com os cortes que estão tendo, conseguimos ver claramente", analisa.

 

A conjuntura histórica nunca favoreceu o desenvolvimento de pesquisas no Brasil
Os recursos destinados pelo governo estadual às instituições estaduais de ensino superior, como visto acima, são parcos. A APIESP aponta que, apenas na UEPG, há 878 estudantes nos mestrados acadêmicos, 91 nos mestrados profissionais e 365 doutorandos. Desses estudantes de pós-graduação, 224 recebem bolsas de mestrado e 112, de doutorado. As bolsas são um método de garantir que os estudantes desenvolvam suas pesquisas com dedicação exclusiva, sem precisar dividir o tempo entre trabalho e estudo.

Convidamos a coordenadora do Programa de pós-graduação em educação da UEPG, Gisele Masson, para analisar a conjuntura da pesquisa no Brasil. Masson é doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina na linha de Educação, História e Política. Para ela, no Brasil, a pesquisa “nunca foi incentivada da mesma maneira como nos países desenvolvidos”, pois aqui as políticas sempre foram “voltadas mais para a preparação profissional de força de trabalho e não para o desenvolvimento científico e tecnológico de alto nível”, aponta.

Sobre o atual panorama das bolsas de pesquisa e o fato de os editais de financiamento para professores pesquisadores não estarem sendo lançados, Masson afirma que “isso demonstra o não incentivo à produção científica nas universidades públicas”.

Isso tudo enquanto a pesquisa Research in Brazil, da estadunidense Clarivate Analytics, de 2017, demonstra que 95% da ciência produzida no Brasil é desenvolvida nas universidades públicas – que historicamente nunca receberam os recursos considerados suficientes para o pleno desenvolvimento de suas atividades.

Sobre a questão do desenvolvimento das pesquisas, Masson diz que “esse sempre foi um problema no Brasil, mas nessa conjuntura atual, a gente vê que, no ponto de vista de um projeto político de incentivo nas universidades públicas, está absolutamente em xeque”. Ela complementa que é muito difícil para um pesquisador que demanda equipamentos ou recursos para coleta de dados não ter esse incentivo, pois as pesquisas acabam mutiladas.

“Ao invés de avançarmos, estamos retrocedendo”, elenca Masson. Em sua análise, na atual conjuntura, “há mais limites do que possibilidades de avanços, e o que a gente defende é que as universidades públicas sejam valorizadas e possam contar com um financiamento, seja para custeio, seja para produção científica, bolsas para os estudantes, pois já tínhamos bolsas limitadas e isso se agravou”. Masson enfatiza que “essas são condições mínimas, básicas e fundamentais”.