“Tem horas que o psicológico não aguenta”, diz profissional da linha de frente contra Covid-19

Profissionais da saúde relatam sintomas de esgotamento profissional por conta da pandemia 

 

Desde agosto do ano passado, a rotina de trabalho do psicólogo Hélcio dos Santos se resume em chegar ao hospital em que trabalha em Ponta Grossa, trocar de roupa, colocar o pijama cirúrgico, luva, touca, avental impermeável, máscara n95 e face shield. Após toda a paramentação entra no setor de covid e começa o atendimento dos seus pacientes até o final do seu expediente sem poder sair do setor seja para descansar ou para se alimentar. Sempre que termina o atendimento de algum paciente é preciso descartar todos os equipamentos de proteção e realizar a troca por equipamentos novos e esterilizados. No fim do seu horário de trabalho, segue, ainda no hospital, para a higienização. Ele toma um banho e é liberado para ir para casa. “Depois disso estamos teoricamente livres e prontos para ir embora, mas essa volta para casa é chegar em casa e tomar um novo banho, deixar a roupa de fora, não misturar nem encostar em nada”, explica Dos Santos. “Só depois disso que eu consigo sentir que estou menos tenso e que realmente consigo ‘desligar a chave do covid”, comenta.

Dos Santos trabalha em um dos hospitais referência para o tratamento de covid em Ponta Grossa. O atendimento direto de pacientes com coronavírus começou em agosto pela instituição, antes o hospital e os profissionais estavam se preparando para este atendimento. O psicólogo explica que a proposta primeiramente era fazer o atendimento dos internados de forma remota, acompanhando pacientes sem expor os psicólogos diretamente aos setores de covid. “No começo ainda estávamos entendendo como funcionava as coisas, então a prioridade dos profissionais que estavam atendendo era que os médicos, enfermeiros, técnicos e fisioterapeutas estivessem o tempo todo com esses pacientes, as demais profissões entravam como um suporte”, recorda.

Dos Santos e seus colegas da área ficavam à disposição e faziam o atendimento através de celulares disponibilizados pela equipe do hospital. O aparelho era levado para os pacientes pelos profissionais que estavam dentro do setor e assim era feita a consulta de forma remota. “Porém, conforme o número de casos foi aumentando e a gente foi entendendo um pouco mais como é que se usava os epis de forma efetiva passamos a fazer os atendimentos diretos aos pacientes”, afirma. 

Atendimentos presenciais

No início dos atendimentos presenciais, o trabalho dos psicólogos era voltado em fazer vídeo chamadas com os pacientes para que eles vissem os familiares, como conta Dos Santos. Porém, como o número de pacientes e de demanda era muito grande, o atendimento psicológico propriamente dito só conseguiu ser realizado depois de uma reorganização das equipes. De acordo com o psicólogo, todo paciente que chega na ala covid do hospital passa por uma entrevista inicial para a equipe entender e saber como lidar com ele, além de filtrar quais são as demandas necessárias para ajudá-lo. 

“Nós, enquanto psicólogos, atuamos e cuidamos do sofrimento humano. Eu não tenho a pretensão de tirar completamente esse sofrimento, porque a hospitalização e o adoecimento é inerente que mobilize algo, mas tudo que eu consigo diminuir vejo que estou fazendo um trabalho no sentido de acolher esse paciente”, afirma Dos Santos. Dentro da ala covid existem momentos muito delicados e dolorosos e todos os profissionais sentem, se sensibilizam e se abalam. Para Dos Santos, um dos momentos que mais o sensibiliza é o fato do isolamento dos pacientes das suas famílias, porque “pode ser que nunca mais as pessoas se reencontrem”, explica. “Quando o paciente que estou atendendo sabe que outro familiar que estava doente morre, não pode fazer uma breve despedida, não pode ter o acolhimento da família, são questões que me impactam muito”, comenta. 

Outra situação frequente que sensibiliza não só Dos Santos mas toda a equipe, segundo ele, é o medo que os pacientes têm da morte. Além disso tudo é muito comum pacientes que estavam bem e estáveis em um dia serem intubados ou até falecerem de um dia para o outro e quando o psicólogo chega para atendê-lo descobre o que aconteceu. “Ficamos então meio que correndo contra o tempo para ajudar o máximo que der hoje, porque eu não sei se amanhã o paciente vai estar ali para a gente continuar atendendo”, relata. 

Como psicólogo, Dos Santos afirma que cria certos tipos de estratégias para lidar com situações como essas, de alguma forma. “É uma parte bem pessoal, mas eu tento entender que os pacientes estão em sofrimento, nós nos sensibilizamos com eles, mas nós não trazemos para casa, de certa forma, eu coloco assim”, explica. Porém ainda lida com a pressão da grande quantidade de atendimentos que precisa fazer. "Às vezes essa questão me pega de querer fazer mais e não poder, no sentido bem prático e concreto da situação, não ter esse tempo disponível”, comenta. 

De acordo com o levantamento de dados realizado por Denise Martins/Infografando, desde Março até Dezembro de 2020, Ponta Grossa teve 199 mortes por covid-19, já de Janeiro a Março de 2021, 445 óbitos pela doença. Para Dos Santos, o momento atual da pandemia trouxe questões bem diferentes da chamada “primeira onda”. “Essa segunda onda está trazendo muitos óbitos, em dois meses tivemos quase o mesmo número de óbitos que o ano todo em 2020 e isso demonstra a pressão que esse momento está trazendo”, afirma. 

De acordo com Dos Santos, o sistema de saúde da cidade está em colapso e isso contribui para a exaustão e pressão dos profissionais que estão trabalhando na área. "Estamos há cerca de um mês trabalhando acima da capacidade, então isso já diz da exaustão que essa onda está trazendo junto, além da pressão que os profissionais estão sentindo em ter que salvar e não ter como nem onde”, comenta. Durante todos os dias do mês de março, todos os leitos de UTI (SUS e Privado) de Ponta Grossa estavam com lotação máxima. 

Meire Florão, assim como Dos Santos, tem contato direto com internados por Covid-19. Há cerca de nove meses começou a trabalhar em um hospital de Ponta Grossa como auxiliar de laboratório e faz coletas de sangue em pacientes internados na UTI por covid para exames. Sua rotina começa às 5 da manhã e termina às 5 da tarde. A profissional relata a exaustão física e psicológica durante os plantões. “Nós infelizmente sabemos que quando um paciente vai passar pelo processo de intubação é porque o caso é grave e tem a possibilidade desse paciente não voltar a vida”, relata. A profissional conta que já presenciou as mortes de pacientes e o sofrimento de filhos, esposas e maridos, pedindo pela vida de seus familiares e Florão se sentia impotente, sem poder fazer mais nada pela vida daquele paciente. “Na hora a gente engole a tristeza, o choro e segue o trabalho, mas tem horas que o psicológico não aguenta, choramos pela vida perdida, pelo paciente que muitas vezes entra conversando conosco, contando de sua vida e acaba saindo dali sem vida”, afirma. 

 

A Síndrome de esgotamento profissional em trabalhadores da linha de frente da pandemia

Dos Santos e Flourão estão todos os dias lidando com pacientes internados pela Covid-19 em Ponta Grossa. Até o momento, a doença matou mais de 700 pais, filhos, amigos e profissionais da cidade. Lidar todos os dias com uma doença tão devastadora impacta o psicológico mesmo daqueles muito preparados, como o caso de Dos Santos.

 Os dois profissionais manifestam sintomas da síndrome do esgotamento profissional ou Síndrome de Burnout. A característica principal da doença é o estado de tensão emocional e estresse crônico provocados pelo trabalho em situações desgastantes. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a Síndrome na próxima classificação de doenças (CID-11), que entrará em vigor em 2022. A CID é uma das principais ferramentas para monitorar a incidência e fazer uma padronização universal das doenças, evidenciando problemas de saúde de diversos países. Entre os principais sintomas da Síndrome de Burnout estão enxaqueca, cansaço extremo, palpitação, insônia, lapsos de memória, irritabilidade, dificuldade de concentração, mudanças bruscas de humor, pessimismo, ansiedade e depressão. Uma pesquisa realizada em janeiro de 2021 pela Associação Médica Brasileira, com 3.882 profissionais brasileiros, mostra que os médicos estão exaustos e sobrecarregados e a Síndrome de Burnout é uma ameaça para os profissionais da linha de frente. 92,1% dos médicos entrevistados apresentaram algum sintoma da síndrome. 

A residente em clínica médica em um hospital de Ponta Grossa, Francilayne Moretto, atua em unidades de urgência e emergência desde 2019. A médica está na linha de frente do Covid desde o começo da pandemia e todos os dias está em contato com pacientes infectados. Moretto define sua rotina como exaustiva, tanto fisicamente, quanto psicologicamente. “São muitas intercorrências com os pacientes, pressão de familiares, autocobrança para prestar o melhor atendimento, frustração quando após tanta dedicação e esforço, não dão resultado e o paciente evolui a óbito”, conta. 

Moretto destaca um dos momentos que a mais a marcou durante a luta diária contra o vírus dentro do hospital. “Lembro que cheguei em uma das UTIs de covid que trabalho e soube que todos os pacientes estavam muito graves e que a grande maioria evoluiria a óbito nas próximas horas”, relata. A médica de apenas 28 anos não conseguiu conter a emoção e o sentimento de frustração. Após passar por todos os pacientes, foi a uma sala de descanso para os médicos e deixou a emoção tomar conta, chorando muito. “Muitos pacientes me perguntam: ‘Doutora eu vou sair dessa né?’. Eu engulo seco e digo que não podemos perder a fé”, comenta. Moretto, relata o sentimento constante de frustração e impotência, muitas vidas foram perdidas nos leitos de UTI em que trabalha e a médica conseguia fazer nada ou pouca coisa.

 

Informações: Denise Martins/Infografando

 

A exaustão dos profissionais de saúde que cuidam do pós-covid

Mariana Martins é fisioterapeuta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Irati e trabalha com o atendimento de pacientes que já passaram pelo internamento e estão em alta em casa, com sequelas da internamento ou da intubação. A profissional explica que a rotina de seu trabalho mudou completamente e a quantidade de paramentação e equipamentos de EPI aumentaram. Segundo Martins é preciso pensar, separar e se organizar antes mesmo de começar o seu expediente para se vestir e se proteger da forma correta para correr o menor risco possível. “Por mais que a gente não esteja dentro da UTI, ainda temos que tomar o cuidado para não se contaminar”, explica. 

Os cuidados com pacientes pós Covid também é uma coisa que necessita de um cuidado redobrado, como relata Martins. “Isso ocorre por esses pacientes estarem mais frágeis, com imunidade mais baixa e mais suscetível de pegar qualquer outra doença, piorando seu quadro”. Martins conta que pacientes mesmo depois da alta hospitalar, chegam a falecer por sequelas do vírus. “Quando a gente perde um paciente, a sensação que eu tenho é de incapacidade, que a pessoa escapou da tua mão, principalmente porque ela já passou pelo pior, que era o internamento e o isolamento”, comenta. 

 Mesmo após seu horário de trabalho, quando retorna para casa Martins relata que não pode e não consegue se desligar. A todo momento pacientes e familiares entram em contato por mensagens ou ligação. Teve casos de pacientes desestabilizarem e terem que ir para a emergência. “Você tem que estar ali dando orientação, então é um trabalho que você tem que sempre ficar meio de plantão e sobreaviso”, afirma. Martins conta que no começo da pandemia, o serviço de fisioterapia pelo SUS não teve tanta demanda, por atender somente os casos mais graves, mas no atual momento os atendimentos são comuns e rotineiros. “Cada dia chega um caso mais grave para que a gente consiga solucionar”, explica. Irati tem hoje quase 4 mil casos confirmados de Covid e 54 óbitos pela doença

“É inexplicável a sensação que temos nesse momento, porque a cada minuto ou a cada meia hora a gente recebe a informação que morreu alguém, amigo, conhecido, familiar é uma sensação de impotência e agonia”, relata Martins. A fisioterapeuta explica que tem crises frequentes de ansiedade e precisou voltar a consultar com psicólogos. Para ela, é uma rotina que muda muito, juntamente com um caos emocional acontecendo. Além do fato dos pacientes que atende contarem a experiência do internamento e da intubação e também muitas vezes usarem o espaço que tem durante as sessões de fisioterapia para desabafar. “De certa forma você se coloca no lugar, eu acabo absorvendo e me colocando no lugar dessa pessoa”, comenta. Martins, assim como Dos Santos, Flourão e Moretto, tem sintomas da Síndrome de Burnout. 

Ficha Técnica: 

Repórter: Emanuelle Salatini 

Publicação: Laísa Braga 

Supervisão: Vinicius Biazotti