Com doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e graduado em Filosofia, Regis Clemente da Costa desenvolveu a pesquisa “A Ditadura Militar no Brasil e a proibição do ensino de filosofia: entre o tecnicismo e a subversão política”. Na entrevista, o professor fala ao Jornal Foca Livre sobre sua área de estudo, impactos da ditadura no momento atual e dificuldades enfrentadas pelos professores durante o regime miliar no Brasil (1964-1985).
Como funcionava a censura na salas de aula na época da ditadura?
Existem inúmeros relatos de casos de censura ao pensamento crítico e ao trabalho de professores, não só de Filosofia e sim a atividade docente geral. Alguns dos relatos mais organizados nesse sentido vem principalmente da Universidade de São Paulo (USP), local que foi foco de resistência à ditadura e também de perseguição por parte do governo. Há vários relatos de invasão a sala de aula por parte dos militares, prisão de professores e de estudantes. Existiam também os “olheiros”, que eram alunos matriculados nos cursos, infiltrados em sala de aula com a finalidade de monitorar professores, monitorar alunos. Isso era uma prática comum principalmente nas universidades. O aluno era supostamente um aluno regular daquela disciplina, mas ele estava ali como informante, como alguém que repassava essas informações que geravam processos e perseguições depois. Apesar de toda a repressão, a luta dos estudantes foi constante ao longo de toda a ditadura. Há casos de estudantes assassinados, presos, torturados e estudantes que tiveram que se exilar. A luta estudantil foi muito grande e dos professores que acreditavam no processo democrático e lutavam por isso. Na época da ditadura, foi feito um acordo chamado MEC USAID [sigla em inglês para United States Agency for International Development, em tradução livre Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], em que os integrantes do Ministério da Educação (MEC) faziam um treinamento e estudos nos Estados Unidos para implementar no Brasil um tipo de educação que é chamada de educação tecnicista. Trabalhadores e filhos de trabalhadores eram formados para a mão de obra, enquanto a elite era formada para ir para as universidades. Era um período em que o índice de analfabetismo no Brasil era muito grande. Havia pouco investimento na educação. O investimento que tinha na educação era para a educação tecnicista de formação de mão de obra.
Quais as marcas da ditadura em Ponta Grossa e como foi a participação da população civil em relação ao regime?
Os efeitos da ditadura para a cidade estão presentes. Temos ruas que homenageiam militares ditadores. Esses que cometeram crimes absurdos. Temos escolas que homenageiam essas mesmas pessoas. Criou-se um trabalho cultural, que vai se assentando na sociedade como se isso fosse algo tranquilo. Uma parcela da população tem um saudosismo pela ditadura. Creio que uma parte por não conhecer a fundo as ações do regime. Outra parte por crer e acreditar ideologicamente naquilo que era praticado, como se a ideologia da ditadura entrasse em consonância com o que essa parcela acredita. Isso se deve ao fato da ditadura trabalhar numa perspectiva ideológica. A ação repressiva era uma das formas de atuação da ditadura. A repressão a aqueles que não se enquadravam e a aqueles que não aceitavam as imposições, os ditames, de quem estava no comando do país, de quem usurpou o poder e de quem fez tudo o que fez. Sobre essas pessoas, houve perseguição. Agora aqueles que obedeceram e cumpriram as normas e as regras, aceitaram aquilo que era próprio da ditadura, seguiram normalmente. Como forma de justificar toda a repressão, vinham os fantasmas que eles criaram, a caça ao comunismo que assustava a população de uma forma que acabava que gerando uma certa aceitação. Uma grande maioria sabia dos riscos, dos problemas, mas por medo ou alguma outra situação acabava se calando. Recebia o nome de comunismo porque era um chavão fácil de se criar para as pessoas entenderem e não se assustarem com a repressão porque o governo está perseguindo os comunistas. Essa relação de tudo que é crítico é comunista, de tudo o que é crítico tem que ser perseguido é o que legitimava muitas dessas ações. Quem não estivesse alinhado com a ditadura, estava contra a ditadura. Se estava contra, era inimigo. O inimigo tem que ser combatido. O que existia era uma propaganda muito grande para legitimar as ações do governo e a ditadura trabalhou muito bem as formas e estratégias de propaganda e também a falta de entendimento da população.
Qual o papel dos professores e dos movimentos sociais para a resistência na época da ditadura?
Um destaque que vale a pena mencionar é a luta estudantil, com a presença muito forte ao longo da ditadura. Após 1964, o engajamento de movimentos sociais de professores foi muito grande inclusive dos estudantes. A luta pela redemocratização sempre existiu. As pessoas que estavam engajadas num projeto de social democracia ou num perfil mais voltado às reformas permaneceram na militância. Era um período que João Goulart estava implantando reformas na sociedade, na educação e na estrutura social que oportunizasse condições aos mais pobres aos trabalhadores. Ai vem situações que vão nessa linha de entender o papel dos professores, estudantes, trabalhadores, movimentos sociais, movimentos de luta pela terra para a permanência das reivindicações e do resgate da democracia.
Na educação, por exemplo, o movimento em universidades e em outros níveis de ensino, educação básica em geral, culminou inclusive em aprovações de leis que estão hoje na Constituição Federal de 1988, que são pautas que já se defendia há muito tempo no Brasil. Com o engajamento de pessoas nesses movimentos, ela se consolida depois na redemocratização. Hoje temos na Constituição Federal que educação é um direito social. Temos a previsão de que a educação tem que ser gestão democrática. Temos que garantir as constituições para a liberdade de ensino, uma previsão de que todas as ideologias vão ser respeitadas e acolhidas dentro do princípio democrático.
Se nós temos democracia hoje, é graças às pessoas que tiveram coragem de enfrentar um período adverso que foi a ditadura e tiveram coragem de lutar. Mesmo na ditadura, essas pessoas se mobilizaram, atuaram e trabalharam. A continuidade disso depende de nós e até de tentar entender esses movimentos.
Como o senhor vê a participação de militares no atual governo, levando em conta que muitas pessoas pedem pela volta da ditadura?
A ditadura trabalhava numa perspectiva ideológica. É um contexto complexo. Por isso existem pessoas que defendem a volta da ditadura ainda hoje. No contexto atual, existem algumas semelhanças, mas creio que precisamos ter cuidado ao fazer essa relação porque é um outro tempo. O país é outro, as condições econômicas são outras, as condições de comunicação são outras e a forma da população pensar é outra. O país mudou, porém, a presença em grande número de militares do governo federal atualmente demonstra que não se tem um apreço tão grande pela democracia. Não pelo fato de terem militares lá porque no governo Temer já se tinha, e supostamente o número de militares era menor e mesmo assim já se tinha ataque à democracia. A democracia não está restrita ao número de militares no governo, mas sim como essas lideranças politicas vão exercer o poder nas garantias democráticas. Creio que vão existir semelhanças no período da ditadura no ponto de vista de algumas ações, mas não como uma relação direta.
Os próprios militares, ao longo do tempo, entenderam que aquele período foi muito prejudicial.
Não é específico do Brasil, mas a democracia no mundo esta sob ataque. É como se vivêssemos numa falsa democracia. José Saramago fala um pouco sobre isso. A democracia não se resume a tirar um governo de que não gostamos e colocar outro que talvez venhamos a gostar. O que é de fato entendido como democracia não é praticado. Quando o movimento social faz uma reivindicação nas ruas, ele é reprimido. Em 2015, os professores do Paraná foram reivindicar direitos básicos como, por exemplo, a aposentadoria e foram duramente reprimidos pela polícia a mando do governador e outros. A própria fala recente do presidente atual de que a democracia só vai existir se as forças armadas permitirem. Não creio que isso seja um lapso. Isso parte de alguém que realmente não acredita no processo democrático efetivo. Pode ser que acredite ou defenda a democracia limitada e mais limitada ainda, mas não numa perspectiva de incentivar as pessoas a participarem. Nesse aspecto, exige uma análise aprofundada. Porém, é fato que se tem um grande número de militares com posições estratégicas no governo. Acaba-se criando alguns fantasmas de novo, colocando o professor como um doutrinador como se o professor fosse um formador de comunistas, que é o que eles afirmam. Vem a ameaça de uma aprovação de uma lei chamada escola sem partido, que é uma grande afronta à liberdade de ensino, de trabalho do professor. Vamos percebendo uma tentativa de silenciar professores, colocando como neutras as ações do governo que são totalmente ideológicas. Uma suposta neutralidade tentando sufocar uma ideologia que eles associam como sendo prejudicial ou perniciosa. Para que o professor só adote ou só discuta uma perspectiva. Quem estuda apenas uma perspectiva é a ditadura. Em uma democracia, os estudantes conhecem várias perspectivas ideológicas, politicas, sociais e econômicas. Se optarmos por uma só, é sinal que caminhamos para uma ditadura. Esse projeto de lei chamado escola sem partido é um grande risco.
Se voltarmos para as ações, a raiz esta lá na ditadura como a grande afeição pelos Estados Unidos, ao ponto da gente ver algumas reverências, como se tivessem uma solução mágica para todos os problemas do mundo. É um grande equívoco. O Brasil nunca esteve longe dos Estados Unidos. As relações comerciais sempre existiram, as relações diplomáticas. Mas existe agora um apelo à ideologia estadunidense de que os Estados Unidos tem algo a nos oferecer.
Com a instauração da Comissão da Verdade em 2011, muitos crimes foram elucidados e levados a conhecimento público. Tendo em vista que a maior parte da população desconhecia as torturas cometidas a civis, qual a importância do conhecimento da população?
A Comissão da Verdade fez o resgate, esclareceu, ouviu pessoas, conseguiu acesso a documentos que até então eram secretos. Revelou, mas, a partir de acordos na própria aprovação da lei ficou previsto que não haveria punição, diferente do que aconteceu em outros países da América Latina, que puniram os crimes da ditadura de maneira muito dura e severa e até hoje se tem a forma de se reparar os crimes da ditadura. A população já não teve acesso há muitas informações naquela época e passado o período os documentos continuaram secretos, sigilosos. Só se mexeu a fundo depois de 1988 com a Constituição. Com a Comissão da Verdade deu um destaque maior. A importância da Comissão da Verdade que esclarece a ditadura. O que se acredita que a ditadura só perseguiu bandidos. Isto não é certo e a Comissão da Verdade vem esclarecer algumas questões. Na Comissão da Verdade, os documentos revelam absurdos, arbitrariedades, situações muito desumanas, muitos deles por motivos banais. Várias pessoas que se envolveram foram perseguidas, torturadas, mortas, desaparecidas. Não estavam em crimes, como muitas vezes alegavam. Eram pessoas que estavam na sua atuação profissional. Toda investigação colabora para gente entender o tamanho da situação, a repercussão de tudo aquilo. A Comissão tem como objetivo mostrar para a população que não houve nada de legal na ditadura. Muito pelo contrário. Foi um período repressivo em que as liberdades foram caçadas. Ela foi criada para reparar e dar voz a quem foi sufocado, silenciado e reprimido. Para reparar essas distorções de colocar as pessoas que sofreram como bandidos, como se alguém foi perseguido porque mereceu. Creio também que uma grande contribuição da Comissão Nacional da Verdade é dar reconhecimento a essas pessoas e trazendo a perspectiva da luta democrática em um tempo que a democracia está ameaçada e que resta muitas vezes a democracia formal para tentarmos nos convencer que ainda somos um país democrático. Vivemos um risco da democracia, como foram riscos que a democracia passou em outros tempos.
Quais são os efeitos de 21 anos de ditadura no Brasil?
Os efeitos a gente ainda sentimos porque temos ainda pessoas defendendo equivocadamente a ditadura. Ainda sentimentos efeitos na democracia já que a população não sente que deve participar da democracia, como se participar não fosse algo para o cidadão e trabalhador. Isso vem um pouco do medo que ainda ficou e do cuidado para se discutir politica. É aquele chavão que diz que religião não se discute, que política não se discute. Na questão da política, é uma herança da ditadura porque na ditadura você não discutia política. Se discutisse, poderia ir preso. O pouco interesse na política cotidiana é uma herança da ditadura. Muitas vezes a população só se interessa pela politica eleitoral apenas em épocas de eleição. O grande prejuízo é o de não entendimento por parte de algumas pessoas do valor da democracia, de entender que a democracia é algo básico e que precisa ser defendido. O cidadão precisa entender que a politica é um espaço que ele tem para atuar. Isso é um direito e que os nossos representantes políticos não são heróis, ídolos ou mitos. São pessoas que estão momentaneamente representando um determinado grupo que achou que aquela pessoa era melhor. Essa é a lógica de uma democracia representativa.
Ficha Técnica
Reportagem: Jéssica Allana
Edição: Alexandre Douvan e Bruna Kosmenko
Foto: Larissa Hofbauer
Supervisão: Professores Angela Aguiar, Ben-Hur Demeneck, Fernanda Cavassana, Hebe Gonçalves, Renata Caleffi
Postado em 05/05/2019 | Modificado em 10/05/2019