A Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Vera Karam de Chueiri, atualmente, é diretora da Faculdade de Direito e coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia, do Centro de Estudos da Constituição, na mesma Instituição. Na entrevista, Chueiri fala sobre a atual situação política do país no Governo Jair Bolsonaro e o papel das instituições jurídicas no contexto da Lava Jato.
A figura de Sérgio Moro tem ou não prejudicado a imagem dos magistrados?
Com uma forma de conduzir o processo penal muito peculiar, acho que ele não contribuiu para o sistema de justiça. Porque existe um princípio constitucional que orienta o sistema de justiça e dá a base do Direito que é o princípio do devido processo legal. Quando olho para a forma como o ex-juiz e o atual ministro conduzia os procedimentos que estavam sobre a sua responsabilidade, não vejo respeito a esse princípio do processo legal e em muitas das suas ações na condução dos processos, não é que todas tenham sido assim. Acho que isso é prejudicial ao sistema de justiça em geral. Não é uma crítica pessoal. É uma crítica a quem quer que faça uso da função para contrariar um princípio constitucional.
É preocupante haver manifestações contra o Supremo Tribunal Federal (STF), como ocorreram nas ruas do país?
Sim. Sou uma pessoa que crê nas instituições. Acredito que a gente, o país, uma comunidade política funciona melhor com as instituições funcionando bem. Acho que elas também fazem boas mediações. A Corte Suprema, seja como Corte funcional, seja Corte de última instância como é o STF, exerce uma função significativa na nossa República. É ruim quando a corte começa a ter um desarranjo entre os seus ministros. É como se fosse um coro super desafinado, em que você não tem mais a sintonia daquela melodia. Para mim, isso é muito ruim para a nossa República. Espero que se consiga reverter esse atual desarranjo.
Segundo a Constituição Federal, no artigo 84 , compete ao Presidente da República manter relações com os Estados estrangeiros. Na sua visão, em que medida Bolsonaro tem cumprido esses preceitos?
O presidente da República não tem cumprido esse e nenhum outro preceito constitucional, porque ele simplesmente não respeita a Constituição. Bolsonaro não está nem aí para a Constituição. Ele governa contra ela. É uma opção que ele escolheu, um movimento que ele faz, calculado, por opção. Quando Bolsonaro faz isso, ele nos coloca em uma situação bastante paradoxal. Porque aquele que chefia o poder executivo, assim como aqueles que chefiam o poder judiciário e legislativo têm compromisso absoluto na defesa da ordem constitucional. Governar contra a Constituição é romper com esse compromisso. Ele tem feito isso interna e externamente. Com relação à ordem internacional, ele tem sistematicamente desrespeitado algo que está na Constituição. Mas mesmo que não estivesse na Constituição, esse é um princípio de convivência dos Estados soberanos, para que você tenha uma ordem internacional equilibrada, que tenha não só relações do ponto de vista do direito internacional público, e dos direitos humanos saudáveis, mas relações também do ponto de vista do direito internacional privado, relações comerciais saudáveis, que também são fundamentais. Quando ele desdenha da ordem internacional, não está só atacando a soberania dos outros Estados e os direitos humanos de uma maneira geral. Ele também está sacrificando o nosso comércio exterior. Há consequências nas mais diversas ordens.
Como que a Constituição prevê a imparcialidade de um juiz?
A função jurisdicional deve ser exercida de maneira imparcial. Esse é um princípio que está consagrado constitucionalmente. A imparcialidade não se confunde com neutralidade. Não significa que o juiz não deva assumir posições. A imparcialidade significa que, em face de uma situação de um conflito de interesses, ele tenha que se colocar como essa pessoa desinteressada, imparcial para poder fazer um juízo, com base no que as partes lhe trouxerem, que não haja nenhum pré-juízo, para que ele possa então julgar. Isso está pressuposto na Constituição. Quando se rompe com isso e depois se reafirma no código de processo, se quebra o que é mais caro para o processo jurisdicional e para a figura do juiz, que é o princípio da imparcialidade.
A anulação da condenação do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, Aldemir Bendine pelo STF em de agosto trouxe algum impacto no meio jurídico?
Bastante impacto porque o Brasil está muito polarizado. Não só a Lava Jato, mas as últimas eleições presidenciais tornaram as questões complexas da nossa política cotidiana quase em questões plebiscitais, como se fosse possível você agir de maneira a responder com sim ou não. As pessoas são muito mais complexas do que isso. Diante deste cenário plebiscitário de grupos opostos de muito tensionamento, o efeito dessa decisão colocou entre os juristas essa questão de que, a partir de agora, se vai anular todas as decisões de primeiro grau tomadas anteriormente no processo da Lava Jato, o que não é verdade.
Particularmente, acho que houve excesso em muitas das decisões tomadas na Operação Lava Jato. Não tenho nenhuma dúvida. Acho que os áudios e o material que está vindo à tona com o Intercept Brasil, não vou entrar no mérito aqui se a fonte é lícita ou não, o fato é que basta você ouvir um áudio, ouvir a voz e você vê que há como identificar a pessoa que está falando. O fato revela que houve uma série de manipulações no processo e acenderam a luz vermelha, demonstrando que nem tudo foi como deveria ter sido. Ou seja, se é para combater a corrupção, eu não posso me valer de meios que não são devidos. Então alguma coisa está errada aí e deve ser revista.
Volto dizer que, com isso, tudo se fragilizou com relação à Lava Jato. Mas não é por isso que vou dizer que agora todo o procedimento tem que ser anulado. Tem que analisar cada caso no seu devido tempo, com a sua peculiaridade. Para isso, temos o poder judiciário e todos os graus de jurisdição e revisão.
As declarações feitas pelo The Intercept abriram brechas para a possível libertação dos presos pela operação?
Acho que elas abrem brechas. Não sou uma advogada criminalista. Mas acho que não precisa ser especializado para se dar conta que ali se tem, de fato, um material que suscita uma série de questões que levam a crer que não houve uma ortodoxia na condição daquele processo. Houve uma heterodoxia, que eles se valeram de procedimentos não muito adequados para chegar a fins que eles queriam chegar e que isso não é de fato correto. Senão, a gente entra em um dilema que não está de acordo nem com a Constituição, nem com o Direito Infraconstitucional, ou seja, é inconstitucional e é ilegal, no meu ponto de vista.
Como a OAB-PR está se comportando com relação às informações do Intercept?
Não sei dizer como a OAB tem se manifestado. Não tenho acompanhado a OAB-PR, as manifestações. Mas posso lhe dizer como o Conselho Federal da Ordem tem se manifestado. Me parece que o Conselho Federal tem sido muito crítico. O presidente Felipe Santa Cruz e a diretoria em torno dele tem se manifestado muito firmemente com relação às irregularidades e ilegalidades e tem sido vítima de perseguição em relação a isso. O que me parece é que o Conselho Estadual aqui da ordem não tem se manifestado muito, ele está um pouco silente.
É inconstitucional as prisões realizadas pela Lava Jato no período em que ocorreram as declarações do Intercept?
A tese é a seguinte: pode-se prender com base em uma condenação que ainda não foi definitiva? Há quem ache que sim, há quem ache que não. É uma tese jurídica que está em disputa. Acho que é inconstitucional. A Constituição claramente diz que ninguém pode ser cerceado da sua liberdade, ser preso, portanto, antes do trânsito em julgado.
A quem diga que a execução da pena não se confunde com o princípio da presunção da inocência. Entendo que a prisão após a condenação em segundo grau, antes do trânsito em julgado é inconstitucional. Para mim, é inconstitucional e ponto. No meu ponto de vista, todas essa prisões decorrentes da Operação Lava Jato, que ocorreram antes da decisão transitada em julgado, quer dizer, antes da decisão final, fatal e sacramental, para mim são inconstitucionais. Mas isso é uma tese e ela pode ser contestada como está sendo. Tem ministro do Supremo que não acha que seja inconstitucional.
O que o trabalho do Intercept permitiu descobrir de costumeiro e incorreto no meio legal?
O que talvez permitiu descobrir de costumeiro é que, de fato, há um network entre aqueles que atuam no processo que não deveria haver, às vezes, uma conversa do juiz com o promotor, com o advogado da parte. Não que isso não deva haver. Deve, mas não nos termos em que, às vezes, há e que se tornou costumeiro. O que houve de ilegal é que basicamente se tinha um juiz que agia como se fosse interessado no processo. Parecia que combinava as coisas com o acusador e o Ministério Público. Isso é absolutamente incorreto.
Ficha Técnica:
Reportagem: Larissa Hofbauer
Foto: Kauana Neitzel
Edição: Jessica Allana, Juliana Cosmoski, Laísa Braga, Rafael Santos e Leticia Gomes
Supervisão: Professores Angela Aguiar, Ben-Hur Demeneck, Fernanda Cavassana, Hebe Gonçalves e Rafael Kondlatsch