Reportagem conta história de duas moradoras de Ponta Grossa que perderam os pais na pandemia

 

Desde o início da pandemia, mais de 1,2 mil pessoas morreram de covid-19 em Ponta Grossa. Deste total, segundo a Prefeitura Municipal, mais de 90% eram pais e mães. Esta reportagem conta duas histórias de quem se foi, e também daqueles que ficam. A primeira delas é de Luana, filha de Luiz Antonio do Nascimento.

Ele tinha 61 anos quando contraiu a Covid-19. Foi no dia de seu aniversário de 62 anos, em 2 de março, que os sintomas se intensificaram e o corpo já não respondia da mesma maneira na luta contra o vírus. Foi preciso chamar o SAMU para tirá-lo de casa e levá-lo até a UPA Santa Paula, pois Luiz já não conseguia mais andar sozinho. Foram doze dias de internação na fila de espera por um leito de UTI. Na época, ele foi o paciente com Covid-19 a ficar por mais tempo esperando pela disponibilidade de leito em Ponta Grossa. Na madrugada do décimo segundo para o décimo terceiro dia de internação, foram liberadas três vagas de leito no Hospital Regional, mas durante o processo de intubação Luiz sofreu duas paradas cardiorrespiratórias e não resistiu. A jornalista de 25 anos Luana Caroline Nascimento, a filha mais nova, é quem compartilha hoje, através das redes sociais, as lembranças do contador de histórias que lhe deu a vida. 

A rotina de Luana e sua mãe foi toda readaptada após o falecimento de Luiz, desde arcar com todas as contas de casa até assumir os cuidados do cachorro do pai, Marley, um pastor alemão idoso que era seu fiel companheiro. A jornalista comenta que mesmo com novas ocupações, o luto ainda é um sentimento presente. “Alguns dias são mais fáceis, alguns dias são mais difíceis, então é um processo não muito linear, e as pessoas precisam ter noção de que o luto não desaparece assim, todo dia é um sofrimento diferente”, afirma. Este período também foi de união de toda a família, em que a irmã mais velha de Luana, Luciane Cristina, e a sobrinha, Analu, formaram uma rede de apoio para a família de Luiz estar unida como ele gostava. “Meu pai sempre teve muitas mulheres na vida dele e por isso que quando eu publico alguma coisa eu sempre compartilho com a frase ‘as meninas dele’, porque tinha minha vó que ele era muito ligado, dona Dolurdes, a esposa, as duas filhas e a neta”, diz. 

Luiz era conhecido por todos como Jabuticaba, por conta do dia em que bateu o carro na bicicleta de um comerciante de frutas. As jabuticabas, que saíram rolando pelo calçadão de Ponta Grossa, acabaram rendendo o apelido criado pela turma do bar que frequentava. Ele também era fã de futebol amador. Luana lembra que o último final de semana que o pai esteve bem foi justamente o que participou de uma “pelada” com os amigos no clube da cidade. “Para a nossa família isso é uma memória muito importante e reconfortante, saber que nesse último final de semana ele fez o que ele gostava, com quem ele gostava, estava se divertindo e aproveitou muito”, diz. Após o falecimento de Luiz, todos os companheiros de time autografaram a camisa que ele usou em seu último jogo para a família emoldurar. Na visão de Luana, uma das maiores surpresas foi descobrir o quanto o pai era querido pelos amigos. “Quando ele entrou no hospital os amigos começaram a procurar, a ligar de 3 a 4 vezes por dia por notícias, a vir aqui em casa dar apoio, e quando o pai veio a óbito eles seguiram por perto. Então ele foi, mas os amigos ficaram e esse vínculo não cortou”, afirma. 

 

Luiz Nascimento em seu último jogo de futebol amador; e com a filha Luana em uma festa de família. Imagens: Arquivo pessoal. 

 

Ela relata que o pai foi seu grande incentivador ao longo da graduação em jornalismo, levando-a para todos os lugares da cidade cobrir eventos e também guardando as matérias assinadas por ela publicadas nos jornais da cidade. Ela ainda destaca que foi o recente início das aulas de seu mestrado em Ciências Sociais que tem lhe dado suporte para manter sua saúde mental durante este período. “Antes do meu pai ficar doente eu me inscrevi e passei na prova do mestrado da UEPG, e eu voltar a estudar era um sonho muito grande dele, algo que eu e ele queríamos muito e deu tempo de ele ficar sabendo que eu entrei antes dele falecer, então tem sido um grande alento”.  

Luana diz que em nenhum momento cogitou a possibilidade do pai não se recuperar da Covid-19. “A gente já sabia que se fosse para sair da UPA era para ir para a UTI porque ele não conseguia ficar um minuto sem o oxigênio, mas a gente tinha certeza que ia passar por isso juntos, tanto que gente já estava fazendo planos de como ia buscar ele, a festa que ia fazer, encher de balão pra ele chegar em casa e ficar reunido com a família”. Ela relata que a causa da morte foram as sequelas, e não a doença em si. O tempo que Luiz esperou para entrar numa UTI foi maior do que o período de ativação do vírus em seu organismo. 

Para ela, o futuro ainda é incerto, mas com o passar dos dias o que tem ficado são as memórias e as histórias de um pai que amava compartilhá-las com quem quer que fosse. “Ele se foi, mas ficaram as meninas dele, ficou o cachorro que segue esperando o companheiro voltar, ficaram os momentos, o amor, os amigos que estão sempre presentes, e a gente que fica tem a missão e o dever de não deixar essa história se perder, de não deixar passar em branco, e perpetuar aquilo que ele deixou”, afirma.  

A fé que o pai tinha é a principal fonte de conforto de Luana nos dias mais difíceis. “Meu pai sempre foi muito presente e participativo na igreja, e tem uma frase do Padre Julio Lancelotti que diz que ‘quem ama não morre nunca’, e eu acho que essa frase conversa bem com quem tá passando um processo de perda de alguém durante a pandemia, porque eles se vão, mas a gente sente o amor que eles carregavam no peito fica”. 

 

Letícia, a filha do Doutor Wagnitz

José Carlos Wagnitz recebeu o diagnóstico positivo para Covid-19 no início de março, após ajudar nos cuidados de sua tia, de 90 anos, que contraiu o vírus. A tia teve sintomas leves da doença. Já José Carlos não teve a mesma recuperação. Com 51 anos de idade, o dentista, mais conhecido em Ponta Grossa como ‘Doutor Wagnitz’, foi internado no Hospital Regional à espera de um leito de UTI. A administradora Letícia Wagnitz, de 23 anos, filha de José Carlos, conta que no dia 17 de março recebeu uma ligação de vídeo do celular de uma enfermeira. Foi nesta ligação que Letícia ouviu o último ‘Eu te amo’ do pai. Horas depois, José Carlos foi entubado, em decorrência de uma trombo-embolia pulmonar, causada por um coágulo de sangue que bloqueia as vias aéreas e impede a troca gasosa nos pulmões. Na mesma noite, José Carlos teve duas paradas cardíacas e não resistiu. Letícia relembra que na noite que o pai faleceu teve um sentimento forte de que o ele não iria sobreviver. A notícia veio momentos depois. 

Letícia menciona que, em decorrência de José Carlos ainda estar com o vírus da Covid-19 ativo em seu organismo, não foi possível fazer velório. Ela ainda conta que antes de saber da morte do pai, seu celular já estava cheio de mensagens e ligações. “Se meu namorado não tivesse escondido meu celular, eu ia ter descoberto que meu pai morreu por rede social, porque a nossa família nem sabia, mas o Facebook e o Instagram inteiro já estavam compartilhando e pedindo foto do meu pai para postar”, diz. 

Como José Carlos morava sozinho, a administradora foi a responsável por organizar o funeral e todos os pertences do pai após o falecimento. “Quando ele faleceu eu me envolvi muito com toda a burocracia que a ficha só caiu quando eu voltei para casa de madrugada, e como meu pai não era casado, não tinha mais filhos, eu tive resolver tudo sozinha, então não tive tempo para o luto, pareceu que a vida simplesmente teve que continuar”, relata. 

Durante os últimos seis meses, Letícia conta que chegou a conversar com uma psicóloga, mas não manteve regularidade, mesmo acreditando que ainda precisa de ajuda profissional. Ela também explica que prefere não olhar fotos e nem reler mensagens do pai por serem memórias muito importantes, e em alguns momentos até esquece que José Carlos faleceu e segue praticando hábitos que mantinha com ele. “Às vezes me vem na cabeça que eu tenho que mandar uma mensagem pro meu pai porque faz tempo que eu não falo com ele, mas daí parece que eu volto para o mundo real e já cancelo essa informação. Às vezes eu mando uma foto de cachorrinho para ele na rede social, mas então eu me lembro que ele não vai receber. Às vezes acho que vou almoçar com meu pai essa semana, mas eu tenho que me lembrar que não, eu não vou”, diz. 

O Doutor Wagnitz tinha mais de 30 anos como dentista e era apaixonado pela profissão, mas tinha se encontrado mesmo na sala de aula. Foram cerca de 5 anos ensinando práticas cirúrgicas. Letícia conta que percebeu o amor dos alunos pelo “professor Wagnitz” quando começou a organizar o apartamento do pai e encontrar diversos presentes. Ela também relata que uma das homenagens mais bonitas feitas a José Carlos veio de seus alunos, que encheram a entrada da universidade de flores e mensagens, além de criarem uma linha de produtos da Atlética de Odontologia com o nome dele. 

José Carlos também era apaixonado por animais e por esportes radicais. Era praticante de ciclismo e de motocross. Segundo a administradora, tinha quatro coisas que o pai mais amava no mundo: a filha, a mãe, dar aula, e a moto. Para Letícia, a aproximação com a família do pai, em especial com a prima e a tia, que cuidaram de José Carlos antes dele ser internado, foi essencial nos meses seguintes ao falecimento. Letícia também afirma que o espiritismo, religião que sua família é adepta, tem lhe dado suporte neste momento. “O espiritismo fala que todo mundo vem para a Terra com data e hora para ir embora, então quem sou eu para achar ruim o que Deus ou uma força maior definiu para ele? Se não fosse a Covid-19, eu creio que esta talvez seria a hora dele ir de outra forma”, explica. 

 

Na Foto 1, José Carlos Wagnitz com a cachorrinha de Letícia, Gaia. Na Foto 2, José Carlos e Letícia em final de semana com a família. Imagens: Arquivo pessoal. 

 

Uma das principais dificuldades que Letícia enfrenta nos dias atuais é pensar nos cenários possíveis que teriam evitado a contaminação do pai. “Tem dias que eu fico pensando se ele não tivesse ido cuidar da tia, se ele tivesse sido vacinado antes, se tivesse vaga na UTI, talvez ele ainda estivesse aqui comigo”, diz. Ela também relata que são em dias comuns que a lembrança da morte de José Carlos lhe traz mais saudade. “No Dia dos Pais eu estava bem, nos aniversários também, mas aí eu acordo numa bela terça-feira qualquer e o dia é horrível porque eu lembro de tudo, eu fico pensando nele e no que ele passou, eu choro, às vezes eu sonho com ele e o sentimento de que ele podia ainda estar aqui fala mais forte”, explica. 

Ela acredita que, apesar da Covid-19, seu pai faleceu no melhor momento de sua vida. “Ele nos deixou na fase mais feliz da vida dele, ele falava que ele tinha se encontrado em tudo, então o que me consola é saber que mesmo ele tendo partido, ele conseguiu conquistar tudo que ele sempre sonhou”. 

 

Ficha Técnica:

Repórter: Manuela Roque

Editor de Texto e publicação : Rafael Piotto

Supervisão : Professores Jeferson Bertolini, Marcos Antonio Zibordi e Mauricio Liessen

 

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