Curta-metragem traz inspirações da MPB e do cinema de ficção científica dos anos 1950-60 para construir a trama
Uma piada muito comum nas redes sociais é sobre como as lésbicas fazem de tudo por amor: começar a morar juntas com pouco tempo de relação, atravessar oceanos para encontrar suas amadas e outros comentários irônicos, descrevem relações com muita paixão envolvida. Mas quem diria que elas também viajariam no tempo e cruzariam universos por amor? Em Iracema, isso é possível.
O curta-metragem de estreia do diretor Yuri Célico, criado de forma independente, segue a narrativa da canção homônima de Adoniran Barbosa, contando como Iracema morreu ao atravessar a rua na contramão poucos dias antes de seu casamento, deixando como lembrança apenas seus sapatos e nenhum retrato. A partir disso, a história do curta se aprofunda no sentimento de luto de Patrícia, personagem principal do filme. Aprendendo a lidar com a perda, ela cria uma relação próxima com o único pertence deixado por sua amada: uma bota vermelha cano alto. Assim, a protagonista começa a transitar pelas poucas memórias que ainda guarda de Iracema, chegando ao clímax do curta-metragem: uma viagem por universos paralelos.
Em entrevista ao Periódico, o diretor e idealizador do curta-metragem comentou sobre o processo de criação do filme, da gênese à finalização.
Periódico: De onde surgiram as inspirações para fazer essa montagem de quadros na edição?
Yuri Célico: A inspiração são filmes da década de 1950 e 1960 que se apoiavam muito nessa técnica antes da chegada do chroma-key para fazer o filme parecer mais "grandioso", apesar de nem sempre ter o orçamento para isso. Além de achar uma técnica linda, eu me vi numa situação muito parecida. Eu queria transmitir a grandiosidade daquela aventura para a personagem, e não tinha os meios pelos quais, e me recusei a apenas sugerir, porque achei que, nesse caso, seria covardia. Como bônus, esses quadros, os matte paintings, ajudam a criar a ideia de uma realidade lúdica e artificial que, para mim, é como a protagonista se relaciona com aquele mundo. Ela não se sente parte dele por causa da sua sexualidade, e agora ela perdeu sua amada e não sobrou nada de lembranças dela. Está tudo nesse limbo da lembrança e da imaginação, que é facilmente distorcido e influenciado pelos sentimentos, então, logo, fantasioso também.
P: Por que botas vermelhas como um condutor de viagem no tempo? E como veio a ideia de unir a música do Adoniran com um plot de viagem no tempo?
YC: Sobre as botas é um pouco mais simples. Queria manter a ideia da música e mostrar que a única lembrança que sobrou de Iracema foi um par de sapatos, mas não queria que fossem calçados comuns, queria algo mais kinky [denominação utilizada para objeto de teor sexual], ousado, quase como algo que elas usassem para fantasias sexuais pra ressaltar que era a sexualidade delas que as afastava do mundo lá fora [o filme é todo em interiores, a única tomada na rua é vista através de grades]. Queria que fosse uma piada, algo tão extravagante que você se perguntaria: "mas, alguém usaria isso, mesmo?", uma coisa alienígena, porque, de novo, é assim que a personagem se sente em relação ao mundo.
P: De modo geral, ficamos muito curiosos em entender o processo criativo por trás do filme como um todo. Poderia explicar como funcionou?
YC: E sobre o processo, bom… É um filme de revolta. Eu queria fazer cinema de um jeito ou de outro, e não conseguia nunca encontrar espaço na minha vida para realizar um filme, porque precisava trabalhar, estudar algo que desse dinheiro. Me vi cada vez mais distante desse sonho até que, durante a pandemia, bati o pé e resolvi que se não fosse por bem, seria por ódio. Juntei cada moeda que eu tinha e, assim que foi possível pisar fora de casa, juntei meus amigos e filmamos num final de semana. O roteiro, os visuais, a direção, os temas, para mim tudo fluiu a partir dessa revolta, essa insatisfação com a realidade e a minha recusa de aceitar que "fazer cinema no Brasil é para quem tem tempo e dinheiro". Realmente é, mas eu não queria deixar de ter isso. Foi o que me motivou nesses últimos dois anos e meio em que passei montando esse filme em todo tempo livre que eu tive. E, veja você, ele me deu tanta propulsão que acabei vindo para São Paulo trabalhar com cinema. Ainda não estou onde eu quero, mas sei que, agora, estou no caminho certo – e tudo graças ao Iracema.
P: Por que as falas são dubladas? Foi para entrar na atmosfera dos anos 1950/1960? Qual a motivação por trás?
YC: O lance da casa foi uma restrição de orçamento que transformamos em um pilar da narrativa. Cinema é sobre achar esses caminhos! A dublagem foi um processo doloroso, eu não queria fazer de jeito nenhum, mas algumas captações não estavam boas, então precisava fazer alguma coisa. Quando o filme começou a tomar esse ar mais burlesco e emulando uma filmagem antiga, um amigo sugeriu eu dublar e assumir descaradamente como dublagem enquanto estética. Achei arriscado. Precisaria ser muito bem feito para parecer artificial "de propósito" e, como os personagens foram vividos por não atores, e eu já estava morando em outro estado, chamei atores aqui de São Paulo para fazer as vozes. Então foi uma confluência de necessidade com estética.
Ficha técnica
Produção: Gabriel Aparecido
Edição e publicação: Mariana Real
Supervisão de produção: Muriel Amaral
Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado