Ele acordou. Depois que eu passei café, banhei a criança, pendurei as roupas no varal, passei duas horas contando histórias e troquei as roupas de cama. Ele acordou. Não me desejou "bom dia": para ele não estava bom, nem dia, considerando que acordou quase duas da tarde. Mas ele tinha trabalhado a noite toda. Eu entendia. Eu sempre entendia. Ou tentava, pelo menos. Reclamou do café, da criança, das roupas, da história e da cama, mas o imperdoável era algo que eu não fiz. Não tinha almoço. Eram duas horas da tarde, o marido trabalhou a noite toda e não tinha almoço. Tinha pão fresco, bolacha, café, ovos, frutas, leite, queijo, presunto, mas não tinha almoço. E eu falhei.
Foto: Leriany Barbosa
Quando eu já terminava de lavar a louça que a pia aguentou por cinco dias, ele decidiu que faria uma torta de frango. Estava cansado, com fome, mal humorado e não lembrava porque havia se casado comigo. Ainda assim, ele faria uma torta de frango para o almoço. Entre suspiros pesados e resmungos, ele espalhou os ingredientes pela casa e deu início ao seu projeto. Se uma boa receita se faz com amor, a dele se faz com inconformismo. As reclamações eram as mesmas da semana passada; os argumentos, os mesmos dos vinte anos de casamento; a agressividade era aquela que se mantinha debaixo dos lençóis desde o dia em que nos conhecemos.
O forno já estava pré-aquecido, mas o que fervia era a discussão. Várias camadas de manteiga, várias faces de um relacionamento infeliz. Ele abria a massa com a ferocidade de quem é contrariado e desfiava o frango como se não tivesse mais nada a perder ali. Uma palavra atravessada foi suficiente para que ele pegasse o abridor de massa e batesse tão fortemente que a mesa - sim, aquela de mármore -, quebrou. A parede, a mesa, a torta, tudo fazia tanto barulho que eu não ouvia minha voz implorando para ele parar, mas eu falei, sei que falei. Quando enfim encontrei o silêncio, ele pegou sua mochila no quarto de trás, entrou no carro e foi embora, deixando a bagunça e a criança chorando.
O resto do dia passei planejando sobre como me livraria dessa relação. A noite caiu e ele não apareceu. A criança perguntava do pai. Não levantei, nem dormi. De manhã, a torta estava sobre a mesa, assada. Ele não tinha mais a mágoa no olhar, parecia arrependido, de novo. Eu tinha fome e tinha o café da manhã. No entanto, não tinha certeza se o recheio da torta estaria com cacos de vidro, raiva ou frieza. Passei o dia fingindo que não dividia a casa com alguém há vinte e cinco anos. Contei histórias para a criança e não deixei que ela descobrisse que mães também choram. Fui dormir cedo, trabalharia no outro dia de manhã. No meio da noite, um som estranho. Era algo desconhecido, não estava chovendo, o portão estava trancado, o alarme não soou. Fechei os olhos e puxei a criança para perto. O que seria mais uma dor?
No outro dia, tudo parecia em perfeito estado: passei o café, comprei o pão, distraí a criança e me lembrei de alimentar o cachorro. Abri a porta e dei de cara com ela: a torta de frango. O som que me incomodou durante a noite foi, possivelmente, do cão pulando a janela, faminto por algo indesejado pelos humanos da casa. A noite rendeu, não restava um pedaço de torta para contar a história (ou a crônica, o que preferir). Enfim, podíamos voltar a ser um lindo casal. Sem torta, sem brigas.
Ficha técnica:
Aluna: Maria Eduarda Kobilarz
Edição e publicação: Cassiana Tozati
Supervisão de produção: Marcos Zibordi
Supervisão de publicação: Cândida de Oliveira, Ricardo Germano Tesseroli e Marcelo Bronosky