Entretanto, apenas o Congresso Nacional pode propor medidas de restrição ao aborto legal
Desde 2018, foram protocolados pelo menos sete projetos de lei antiaborto na Câmara Municipal de Ponta Grossa. Um deles, que institui uma campanha permanente contra o aborto no município, foi aprovado em fevereiro deste ano e sancionada pelo prefeito em exercicio Capitão Saulo (Republicanos). Outros seis projetos contrários ao aborto legal estão em tramitação na Câmara, sendo que quatro deles foram propostos em 2023.
Os projetos antiaborto não são uma exclusividade de Ponta Grossa e fazem parte de um movimento maior na tentativa de desincentivar a realização do procedimento no país. Vários estados e municípios brasileiros têm aprovado projetos semelhantes, incluindo a Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), que criou em 2019 o Dia Estadual de Conscientização Contra o Aborto.
Entretanto, a professora de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Maria Cristina Rauch Baranoski, afirma que projetos de leis estaduais e municipais que tentam restringir a prática do aborto legal são inconstitucionais. "Câmaras municipais e Assembleias Legislativas não têm competência para legislar sobre o aborto no Brasil", afirmou Baranoski. A professora explica que as situações em que o aborto é legal no Brasil estão descritas no Código Penal, então qualquer medida que vise dificultar a realização do procedimento só pode ser feita pelo Congresso Nacional. Para ela, uma campanha contra o aborto é uma afronta a um direito garantido. “É espantoso que, em 2023, ainda existam homens preocupados em patrulhar o corpo das mulheres”, afirmou.
Desde 1940, o aborto é permitido no Brasil nos casos em que a gravidez é resultado de abuso sexual ou quando o parto põe em risco a vida da gestante. Em 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) passou a permitir também o procedimento quando o feto é anencéfalo, ou seja, não possui cérebro.
Crédito: João Vitor Pizani
Projetos antiaborto em Ponta Grossa
A campanha permanente “em prol da vida”, que foi aprovada pela Câmara Municipal de Ponta Grossa, não faz distinção entre o aborto clandestino e o procedimento realizado em consonância com a legislação. A lei visa promover educação e conscientização antiaborto no município, o que inclui atividades e mobilizações para alertar sobre os efeitos colaterais que um aborto causa na mulher e no feto. Na justificativa apresentada no projeto, o autor, Leandro Bianco (Republicanos), afirma que o objetivo é valorizar e defender a vida humana.
Outro vereador de Ponta Grossa que tenta legislar sobre o tema é Felipe Passos (PSDB), que possui seis projetos de lei envolvendo o aborto, quatro deles protocolados este ano. As proposições incluem a criação do “Dia Municipal do Nascituro” e também a fixação de placas ou cartazes educativos para conscientizar as gestantes sobre os riscos da realização do procedimento, mesmo nos casos em que é previsto em lei.
Contudo, o projeto mais controverso de Felipe Passos é o PL 037/2023, que visa equiparar a gestante vítima de abuso sexual à gestante de risco. A proposta assegura o direito à realização de exames de ultrassonografia para a mulher e prevê que o profissional médico responsável pode sugerir que a gestante escute os batimentos cardíacos do feto.
Segundo Felipe Passos, o projeto procura garantir às gestantes vitimas de abuso sexual mais recursos para que sua escolha pela interrupção ou não da gravidez seja feita com lucidez. “Há um modismo cultural e ideológico que mostra como se o aborto fosse a libertação e o remédio para tudo, mas não é bem assim”, disse o vereador. Passos nega que os projetos protocolados por ele sejam “antiaborto”, afirmando que na realidade eles são “em defesa da vida”.
Em um parecer consultivo realizado a pedido da Câmara Municipal de Ponta Grossa, a advogada Fabienne Oberlaender Gonini Novais do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) defendeu que o PL 037/2023 é inconstitucional porque tenta legislar sobre direito e processo penal, competência privativa da União. Além disso, o parecer considera que “submeter a gestante vítima de abuso sexual à escuto dos batimentos cardíacos do nascituro é absolutamente desumano e cruel”.
Para a co-vereadora Ana Paula de Melo (Coletivo PSOL), o projeto é uma afronta a um direito já garantido. “É direito da mulher (nos casos previstos em lei) interromper a gestação. E o que esse projeto pretende fazer é dificultar o acesso a esse procedimento, inclusive violentando essas mulheres”, afirmou. Na opinião de Melo, os vereadores que propõem projetos "escancaradamente inconstitucionais" buscam acenar para uma base conservadora e construir uma narrativa de que defendem a vida.
A ofensiva contra o aborto legal no Brasil
Há também dezenas de propostas em tramitação no Congresso Nacional. É o caso do PL 2125/2021, do deputado Junio Amaral (PL-MG), que pretende aumentar para até 20 anos a pena para mulheres que interromperem a própria gestação.
Segundo Clara Wardi, assessora técnica do CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria, tentativas de restringir o acesso ao aborto legal não são um fenomeno recente no Brasil. “Essa articulação dos partidos mais conservadores ocorre, mais ou menos, desde os anos 2000, mas ganha força principalmente a partir do governo de Jair Bolsonaro”, conta a assessora. Clara ainda afirma que o governo passou a legislar por meio de decretos e portarias na tentativa de restringir ou até mesmo acabar com esse direito.
Aborto legal não é realizado em Ponta Grossa
O Ministério da Saúde, em norma técnica publicada em 2011, estabelece que todos os hospitais que oferecem serviços de ginecologia e obstetrícia têm a obrigação de atender mulheres que buscam a interrupção das gestações nos casos previstos em lei. Além disso, é dever do Estado manter, nos hospitais públicos, profissionais que realizem o aborto.
Ainda assim, muitos serviços não realizam o procedimento. É o caso da 3º Regional de Saúde do Paraná, que abrange 12 municípios do estado, incluindo Ponta Grossa. A Divisão de Atenção e Gestão em Saúde do departamento informou à reportagem que o aborto legal não é realizado por nenhum serviço de nossa região de saúde.
Quatro dos projetos contrários ao aborto legal em tramitação na Câmara foram propostos em 2023. Foto: Matheus Gaston
Segundo o Mapa Aborto Legal, atualmente, o Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná é o único serviço que realiza o abortamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Para Clara Wardi, uma das principais barreiras enfrentadas por mulheres que buscam realizar um aborto legal no Brasil é a diferença regional na oferta do serviço. “Como pouquíssimas unidades de saúde realizam o procedimento, acontecem verdadeiras peregrinações de mulheres, meninas e pessoas gestantes”, conta Wardi.
Ficha técnica:
Reportagem: João Vitor Pizani
Edição: João Paulo Fagundes e Sara Dalzotto
Publicação: Sara Dalzotto
Supervisão de produção: Manoel Moabis Pereira dos Anjos
Supervisão de publicação: Marizandra Rutilli