A lei n°14.611 de 2023 assegura a igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenharem a mesma função no mercado de trabalho
No dia 3 de julho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que representa um marco na luta pela igualdade de gênero no país. A lei n°14.611 de 2023 assegura a igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenharem a mesma função no mercado de trabalho. Apesar da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já proibir a diferença salarial, o novo texto legal estabelece punições mais severas às empresas e reforça mecanismos de fiscalização para garantir o cumprimento da norma.
A diferença de remuneração entre homens e mulheres, que vinha em queda até 2020, registrou um aumento de 22% em 2022, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em média, uma brasileira recebe apenas 78% do que é pago a um homem em funções equivalentes. Diante dessa realidade, a nova lei representa um avanço significativo no combate à disparidade salarial de gênero.
Hanna Caroline Krüger, advogada e mestranda em Direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) explica que a legislação brasileira possui diversas medidas legais para enfrentar a discriminação de gênero no mercado de trabalho. A necessidade dessas medidas vêm, segundo ela, do machismo estrutural, a ideia de que o homem é o responsável pela renda familiar, desvalorizando assim o trabalho feminino, mesmo que exercendo a mesma função.
A advogada explicou que a lei n°14.611 de 2023, prevê medidas para garantia da igualdade salarial, mecanismos de transparência salarial, fiscalização, criação de canais específicos para denúncias em casos de discriminação, promoção de programas de inclusão no ambiente de trabalho, fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, permanência e a ascensão no mercado de trabalho, em igual condições oferecidas aos homens. “Nota-se que o Estado, no atual governo, vem demonstrando interesse em promover normas e políticas públicas voltadas à mulher”, falou a advogada.
A integrante da Frente Feminista de Ponta Grossa e co-vereadora do Mandato Coletivo do PSOL, Ana Paula de Melo esclarece que a partir dessa nova lei, o valor da multa será dez vezes o novo salário devido pela empresa à trabalhadora discriminada. Porém, o pagamento das diferenças salariais não exclui a possibilidade de uma ação trabalhista por danos morais pela pessoa lesada. A fiscalização se dará sobretudo por meio de relatórios semestrais de transparência salarial, elaborados por empresas com 100 ou mais trabalhadoras. “O desafio será garantir que as empresas elaborem estes relatórios, e que estes contenham informações que condizem com a realidade da empresa”, explica Ana Paula. Sendo assim, o maior desafio é que o governo e a população colaborem no processo de efetivação da lei, por meio da fiscalização.
Maria (nome fictício) trabalha em uma rede grande de supermercado e contou que demorou para conquistar seu espaço na empresa. Ela explicou que precisou se esforçar muito ao longo dos anos, e que permaneceu no mesmo cargo enquanto seus colegas homens eram promovidos. Maria já percebia que ganhava menos que alguns colegas homens, mesmo desempenhando as mesmas funções e com a mesma competência. Apesar da lei sancionada, a realidade de Maria não mudou. Ainda assim, Maria acredita que com o tempo e a conscientização, a lei poderá fazer a diferença e alcançar a igualdade salarial desejada para todas as mulheres.
Hanna Caroline Krüger explicou que o trabalho da mulher para se afirmar enquanto uma pessoa com direitos é complexo, considerando todas as dificuldades em alcançar a plena igualdade de gênero. “Historicamente, observa-se que em uma sociedade patriarcal, a figura feminina ocupou um lugar de submissão ao homem, este que detinha o poder, responsável pela renda familiar”, explica a advogada. Nesse contexto, a mulher tinha como função o trabalho não remunerado de cuidar do lar e da família, entretanto, mudanças sociais possibilitaram a entrada da mulher no mercado de trabalho. Porém ainda hoje persiste essa diferença socioeconômica, desfavorecendo o trabalho da mulher.
A advogada conta que a nossa Constituição Federal de 1988, apresenta que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres pela lei, mas na prática não é algo tão simples. “Culturalmente, temos o trabalho doméstico visto como feminino, e assim, vemos a mulher com o acúmulo de funções do trabalho remunerado com o trabalho não remunerado”, aponta. Hanna Carolina justifica que os homens, geralmente, saem para o trabalho com a responsabilidade de trabalhar, mas as mulheres, quando na mesma situação, precisam organizar a dinâmica da casa, como por exemplo, os afazeres domésticos e cuidado com os filhos.
“A feminização da pobreza pode ser entendida como um processo em que a mulher, com filhos, chefe de família, tendo que se responsabilizar sozinha pelo trabalho remunerado e não remunerado, em favor de seu sustento e de sua família”, analisa. Nessa perspectiva, Hanna Carolina expõe que com toda a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, quando se fala sobre a feminização da pobreza, é necessário falar sobre a ideia de que mulheres, ao longo do tempo, vem se tornando mais pobres do que os homens. “O simples fato de “ser mulher” já indica a vulnerabilidade social e econômica, pela dificuldade em dividir a “dupla jornada” entre o trabalho remunerado e o não remunerado”, explica Hanna Caroline.
Mulheres mães e a vida acadêmica
Bruna Alves Lopes, professora do Departamento de História da UEPG, contou que em 2015, quando iniciou a carreira no ensino superior, em uma conversa informal ouviu de um aluno que a mulher deveria ganhar menos por engravidar. “Fiquei surpresa com o comentário, afinal parecia tão arcaico”, conta. Bruna explicou que esse jovem apenas revelou uma percepção de mundo que talvez nem ele compreendesse ao certo: um mundo dividido entre “homens” e “mulheres” e cada um teria papéis a desempenhar.
“Os homens ao serem pais e estarem a procura de um emprego são questionados sobre com quem seus filhos ficarão enquanto eles trabalham. Mas, qualquer mulher, mãe e trabalhadora sabe que, seguido dessa questão, logo virá a pergunta, quem vai cuidar enquanto você trabalha”, aponta. Bruna fala que o exemplo pode parecer apenas uma questão formal, visando auxiliar o empregador a escolher o profissional que melhor se adequa às necessidades da empresa, mas esconde a ideia de que o mundo do trabalho formal não é para as mulheres. “Acredito que o sexismo contribui não apenas para inserir uma barreira para as mulheres acessem os trabalhos formais, mas que recebam uma remuneração justa e de acordo com suas qualificações profissionais, além do impedimento em ascender na carreira e ocupar lugares de lideranças.” relata a professora.
Bruna explica que historicamente a ciência é vista como algo produzido pelos homens. Embora possamos encontrar inúmeras mulheres que se dedicaram à esse ofício, na prática esse era um espaço exclusivo para os homens e, quando elas apareciam eram para oferecer um suporte para a realização das pesquisas. O quadro começa a mudar somente a partir da segunda metade do século XX, momento em que as mulheres começam a ter mais acesso às universidades e carreiras científicas.
“Um exemplo disso são os cursos de Pedagogia, a feminização do magistério está ligada com os estereótipos de gênero que no caso das mulheres, são articuladas com ideias como cuidado, doação e amor”, analisa. Essas ideias levam a acreditar que mulheres seriam as mais adequadas para a função docente, principalmente quando se trata de crianças, explica Bruna. Isso também acaba se refletindo em outras questões, como por exemplo, primeiro professoras não serem vistas como profissionais que dedicaram tempo e esforço intelectual para exercerem seu ofício, mas sim como uma espécie de “cuidadoras”, além da má remuneração. “Algo semelhante acontece com o serviço social, e de forma inversa, em cursos como agronomia, ciências da computação e informática”, aponta.
Bruna traz outro exemplo: os homens quando são promovidos comemoram, já as mulheres esperam para chegarem em casa e negociarem com seus parceiros como farão: “é possível o casal mudar de cidade? E as crianças?” Depois de respondidas essas questões é que elas aceitam ou não a possibilidade de alavancar as carreiras. “Isso demonstra o quão enraizada a ideia de que a vida da mulher deve estar sempre articulada com os interesses dos outros, sendo ela a única responsável por promover o bem-estar daqueles que as cercam”, conta. A professora de história defende que mulheres dividem seu tempo com o trabalho formal e com as atividades domésticas, isso quando não estão envolvidas em atividades acadêmicas.
“Lembro que quando aconteceu a realização do Encontro Regional de História da ANPUH-PR, a professora Georgiane Vásquez reivindicou que o encontro tivesse um espaço para que acadêmicas e pesquisadoras mães pudessem participar do evento sabendo que seus filhos estavam bem”, fala Bruna. Esse tipo de iniciativa, além de abrir a universidade para as crianças, auxilia as mães a participarem dos debates acadêmicos. Entretanto, essa ainda não é a regra nas universidades, aquelas que não possuem uma rede de apoio, simplesmente não têm alternativas para desenvolver as identidades de pesquisadora e mãe, o que impacta o futuro profissional dessas mulheres.
Ficha técnica:
Produção: Pamela Tischer
Edição de texto: João Paulo Fagundes
Publicação: Heloisa Ribas Bida
Supervisão de produção: Manoel Moabis
Supervisão de publicação: Luiza Carolina dos Santos e Marizandra Rutilli