Às duas da tarde do dia 5 de outubro, Walkir Fernandes e Carol Sakura chegaram ao Museu Campos Gerais para exibição e debate do curta metragem Apnéia, lançado em janeiro passado e vencedor do Festival de Gramado de 2019. O curta traz a história de Muriel, uma menina que tenta enfrentar seu medo de nadar, além de abordar outros problemas como a distância entre ela e sua mãe, o abuso cometido por seu padrasto e a busca por sua própria identidade. Uma produção de animação leve, com traços e narração suaves, mas aborda temas mais sombrios e de difícil discussão. Em uma conversa despretensiosa e divertida sobre arte, lembranças da infância e demais curiosidades, mencionamos Antônio Abujamra e nossa comum admiração pelo dramaturgo. Neste momento, fiz a Walkir uma pergunta do repertório de Abujamra e ele me pediu tempo para responder. Ao final da exibição e debate, o casal sentou-se comigo e Walkir já havia formulado resposta para tal pergunta, ao fim da entrevista.

Walkir Fernander e Carol Sakura são os responsáveis pela produção do curta metragem Apnéia, premiado em 2019 - Foto: Yuri Marcinik



Das metáforas presentes no filme, “aprender a nadar” está relacionado a “aprender a viver?”

C: Para mim é um contraponto entre as pernas e o andar. São dois elementos muito fortes e presentes no filme. Certas vezes, andamos sem olhar para onde estamos ou, até mesmo, para quem somos. Quando você está nadando, talvez seja um mergulho em um espaço apenas seu e esta é a distinção: quando ela aprende a nadar, ela está vendo apenas a si mesma como mulher e tendo voz, porque a sereia precisa nadar pra ter voz, ao contrário de quando ela tem pernas e não pode mais falar.

W: “Aprender a nadar” seria ter a ferramenta necessária para buscar o que ela é. O filme acaba com ela pronta para tal descoberta.

C: Ela fala de um lugar mais amplo e este lugar sempre existiu. Quando ela aprende a nadar, seria como se ela fosse mais longe. Ela não está sufocada em uma multidão na cidade onde ela se sente silenciada e presa.

W: Algumas pessoas podem fazer a leitura de que as minorias estão ganhando espaço. No cinema e nos quadrinhos, por exemplo, a maioria de produção é majoritariamente masculina. A presença feminina é muito recente em tais meios.


O que o filme fala e poucas pessoas percebem?

C: Difícil dizer. Já vi muitas leituras diferentes. Fico muito feliz quando as pessoas não o vêem, apenas como autobiográfico. Mas também como uma construção ficcional da narrativa: que existe uma criação de importância ali. Ele fala muito sobre solidão e as pessoas reparam, mas tem várias pequenas referências que são muito pessoais e não têm como as pessoas saberem. Gosto é de ver como as pessoas percebem muito mais do que a gente imagina.

W: O filme é deixado em aberto. Ele tem espaço para a pessoa se colocar. Pessoas que vêem o filme e têm uma leitura mais rasa: “É um peixe fora d’água”. Ou seja, alguém que não se encaixa no ambiente em que está. Já alguns mergulham tão fundo ao ponto de fazerem leituras que nem eu e a Carol fomos capazes.

C: Não sinto falta, mas às vezes me pergunto se as pessoas sabem que o peixe que voa no céu também é a menina. No geral, nossas expectativas foram atendidas.


Vocês receberam represálias por tratarem de temas como o aborto?


C: Só de minha mãe. É algo muito complexo envolvendo uma relação entre nós duas. Ela diz que vai me processar porque não gostou de saber que fiz um filme onde ela está inserida. Fora isso, tem sido tranqüilo. As pessoas gostam porque ele é um filme leve.


O filme ganha um novo significado a cada exibição?

W: Com certeza. Estamos passando por festivais e vemos que a percepção do filme muda conforme a curadoria do festival. Em Curitiba, o filme foi colocado junto com outros que abordavam minorias. Eram filmes que abordavam trans, gays e indígenas, por exemplo, mas muito pesados de estética. Isso contribuiu para uma visão mais pesada do Apnéia.

C: Em Recife, o filme foi o último a ser exibido visto com outros muito alegres.

W: As pessoas estavam com um humor diferente, viram o filme e se emocionaram, assim como no Anima Mundi também.

C: Ele muda conforme o local onde estamos e também como estamos. Eu sempre fico nervosa de apresentá-lo porque cada público é diferente.

Entrevista foi realizada após visita e conversa de Walkir e Carol no Museu Campos Gerais, em Ponta Grossa - Foto: Yuri Marcinik


Quais são as grandes deficiências de produção e exibição do cinema nacional atualmente?

W: É muito difícil fazer cinema no Brasil. Na verdade, é muito difícil fazer arte no Brasil. Trabalho também com quadrinho e sei o quanto é. Ao mesmo tempo em que temos muitas pessoas apaixonadas pela arte, muitas ainda resistem. A maior dificuldade hoje é fazer com que as pessoas reconheçam o valor de nossa arte e sua importância. Que saibam o quão bom é o nosso cinema. Um filme como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é uma obra que conversa com o que está acontecendo na sociedade brasileira atual. O nosso cinema é muito criativo.

C: Até pouco tempo, tínhamos preconceito com cinema nacional que só recentemente deixou de existir e, agora, parece querer voltar.

W: É muito difícil também conseguir dinheiro para fazer um filme, principalmente filme de animação que é muito caro. O Apnéia é um filme que deveria ser feito em três ou quatro anos, mas tivemos que fazê-lo em um ano por falta de recursos para bancar o projeto por todo este tempo. E com exceção de alguns lugares, como o Japão, não conheço empresas privadas investindo em produções do tipo.


Se vocês fossem começar o Apnéia hoje, o que mudariam?

W: Antes de começar, tiraria seis meses de férias para estar bem descansado.

C: Ele foi muito corrido para fazer. O Walkir sofreu muito. Hoje eu ainda vejo coisas que gostaria de melhorar, tipo “essa cena poderia ser um pouquinho diferente”. Acho que o Walkir poderia ter mergulhado mais no processo, porque à vezes ele não conseguia participar de momentos que ele quis estar presente, como o desenho da protagonista.

W: Eu tenho uma relação muito boa com o filme, por isso digo que não mudaria nada. Sempre há cenas que sentimos falta de algo, mas isso faz parte do processo. Sinto muito orgulho dele.


Para encerrar: qual é o papel do artista na tragédia cultural brasileira?

W: Neste momento, é de resistência. Não podemos nos entregar em um momento tão caótico e marcado pela perseguição a minorias, artistas e demais envolvidos com a cultura. O artista tem o papel de mostrar também aquilo que as pessoas não querem ver. Tocar na ferida. O Apnéia tem poder por tocar em temáticas de difícil acesso.

C: Didi Huberman compara, em um texto, o artista a um vagalume: eles têm o poder de brilhar mais quando a noite é mais escura. Quando os tempos são mais tenebrosos e sombrios, o artista aparece e resiste para trazer a luz. Este é nosso momento de iluminar a escuridão.


Ficha Técnica

Reportagem: Cássio Murilo
Foto: Yuri Marcinik
Supervisão: Professoras Hebe Gonçalves, Ben Hur Demeneck, Rafael Kondlatsch, Angela Aguiar e Fernanda Cavassana
Monitor: Hellen Scheidt
Apoio técnico: Reinaldo Santos