2017. O ano que marca o aniversário de 500 anos da Reforma Protestante é também um ano caracterizado por atos de intolerância religiosa em todo o mundo.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump, eleito em novembro de 2016, emitiu um decreto proibindo a entrada de imigrantes e refugiados de origem muçulmana no país. Na Rússia, a Suprema Corte considerou o centro administrativo das Testemunhas de Jeová uma organização extremista e proibiu as suas atividades. No Egito, duas explosões em Igrejas Coptas (igrejas cristã-ortodoxas, da minoria católica no país) mataram cerca de 40 pessoas e deixaram mais 100 feridos na Páscoa.

No Brasil, o cenário também é preocupante. As denúncias de intolerância religiosa feitas pelo DISQUE 100, a ouvidoria oficial da Secretaria Especial de Direitos Humanos, somam 697 casos no período de 2011 a 2015. O aumento no número de casos de 2014 para 2015 foi de quase 50%. Somadas as queixas de outras ouvidorias no Rio de Janeiro nesse período, o número de denúncias sobe para 1.834 casos.

Os dados são de um relatório divulgado em janeiro de 2017 pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), entidade formada por pessoas de 17 segmentos religiosos , pelo Tribunal de Justiça e a Polícia Civil do Rio de Janeiro, e pelo Ministério Público. Também participaram do levantamento o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) e o Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER), do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em Ponta Grossa, a Polícia Civil não soube informar o número de ataques à liberdade religiosa, mas os casos que o Periódico encontrou reforçam outro dado do relatório – as igrejas de matriz africana são as que mais sofrem com o problema. Das denúncias feitas em todo o Brasil através da CEPLIR (Centro de Promoção da Liberdade Religiosa da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos), 71% são de ataques às igrejas afro-brasileiras.

“As pessoas reconhecem a minha mãe pela boa cozinheira que ela é, mas a marginalizam pela religião que ela segue”, relata Amazonas Batista, filho de uma mãe de santo e umbandista de Ponta Grossa. Os insultos sofridos por quem segue uma religião de matriz-africana vão desde à encaradas nada amigáveis na rua até atitudes mais extremas. “Criaram um Facebook falso com o meu nome e fotos e as vincularam com imagens de demônios e vídeos de pastores exorcizando espíritos”, conta Rafael Almeida, umbandista, membro do Centro de Umbanda Luz de Oxum. Confira o material produzido pelos alunos do segundo ano sobre o assunto:

 

 

Mas qual a razão de todo o ódio? O Periódico conversou com especialistas de História, Sociologia e Psicologia para entender as manifestações de intolerância religiosa e se estamos vivenciando um retrocesso.

 

 

 

fonte: Brasil Escola

 

 

A teoria da História

Marco Aurélio Monteiro, professor de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e pastor da Igreja Evangélica Reformada, acredita que a intolerância surge em estados de crise generalizada. “Quando há crise e mal-estar social, o instinto natural da pessoa é proteger a sua zona de segurança e rejeitar o que não faz parte dela”, explica. 

A intolerância nasce de outras áreas e migra para um local de divergência que, em muitos casos, é a religião. Num país multicultural como o Brasil este processo se intensifica devido à variedade de religiões.  Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, são mais de 50 religiões declaradas.

Para Monteiro, a intolerância religiosa no Brasil é reflexo das crises na política e na economia. “Retrocesso é um bom termo para descrever o momento. Não chegamos em um ponto que nunca havíamos chegado antes, mas é fato que regredimos. Até 2013, a situação que vemos hoje não existia”, pontua o historiador.

Monteiro acredita que a mídia contribuiu para criar sensação de crise que leva à intolerância, mas os protagonistas em fomentar o ódio pela religião alheia são as ‘igrejas de mercado’. “São as igrejas que se aproveitam da crise e apresentam um crescimento absurdo nesse período. Elas são autoritárias e travestem o discurso religioso num discurso de ódio”, conta Monteiro. Segundo o historiador, a intolerância possui uma função política, que é minar o empoderamento das minorias.

 

A perspectiva sociológica

Para Rudy Assunção, sociólogo e católico, a intolerância religiosa possui múltiplas origens, que podem ser econômicas, étnico-raciais ou ainda da própria religião. “A religião não é má em si mesma. Há religiões que têm ou são formas ‘patológicas’, no sentido que estão atreladas a comportamentos e visões distorcidas da realidade e de Deus, sobretudo aquelas que usam a figura divina para justificar a violência”, explica.

 

"Ninguém pode ser discriminado ou considerado intolerante por considerar como verdadeira a sua visão religiosa. Do contrário, as religiões perderiam sua identidade, sua especificidade"
Rudy Assunção

 

O sociólogo afirma que, em linhas gerais, a intolerância religiosa representa uma patologia social e a constante exposição a ela pode ser destrutiva para um indivíduo, especialmente quando parte do seu círculo social. Segundo um perfil traçado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) no relatório citado no início da reportagem, vizinhos (68%) encabeçam a lista de agressores e suspeitos, seguidos de familiares próximos (14%), professores (11%) e empregadores (5%).

“O indivíduo que cresce num ambiente de intolerância, seja como agente dele ou com vítima desenvolve uma visão distorcida do mundo e de si. Quem aprende a zombar e desrespeitar perde inevitavelmente a riqueza que nasce da convivência, cresce de forma amarga e pobre; e quem é objeto da intolerância em todos estes ambientes não vê somente a sua religião como menor, mas vê a si mesmo como inferior ou algo do que se tem de envergonhar”, diz Assunção.

O sociólogo questiona o relatório, que privilegia o estado do Rio de Janeiro e restringe o debate às religiões afro-brasileiras. “Restringir a avaliação às vítimas das religiões afro pode reduzir a nossa avaliação, e o tempo todo associar intolerância, religião e cor. Assim, um relatório sobre intolerância é sempre incompleto”, afirma.

Contudo, Assunção não acredita que vivemos um retrocesso. “Para isso seria preciso dizer que a as relações entre religiões melhoram na modernidade. Em termos institucionais, sim. Em termos locais, onde faltam autoridades religiosas para regular e eliminar discrepâncias, reina o que sempre reinou: o conflito”.

 

 

 

A hipótese da Psicologia

Para a psicóloga e umbandista Lorene Camargo, a causa da intolerância está na junção de fatores culturais e no medo do desconhecido. “O medo, o fanatismo e o ódio construído socialmente são as principais causas, especialmente no caso das religiões de matriz afro”, explica.

A intolerância religiosa não é um crime sem vítimas. Segundo Lorene, os efeitos em quem sofre com a intolerância vão desde a frustração até o medo de sair de casa, o que configura quadro de pânico. “Fica mais difícil viver, a pessoa vai se fechar e vai deixar de compartilhar com a família as coisas boas que a religião traz por medo de retaliação. Vai se silenciar cada vez mais”, destaca a psicóloga.

 

"Aumentou-se a busca por religiões que pregam a liberdade, principalmente por parte dos jovens. Não há procura por um Deus punidor"
Lorene Camargo

 

Lorene crê que o número de denúncias divulgado no relatório da CCIR é pequeno e não reflete a realidade do Brasil. Ela lembra que muitos não denunciam porque não sabem como denunciar ou porque temem ser reconhecidos e sofrer alguma opressão. “A SEPPIR com certeza é um avanço, mas não há políticas públicas eficientes – intolerância religiosa é um tema que sequer está na agenda pública”.

Lorene acredita que há um retrocesso, mas ele é relativo. “Atualmente a intolerância é mais explicita do que há uns 20 anos atrás. Antes era mais velado, era politicamente incorreto se manifestar contra uma religião. Hoje, é uma disputa ideológica aberta”, afirma. Por outro lado, a psicóloga percebe que a resistência das religiões oprimidas é maior. “Hoje as pessoas se sentem mais à vontade para assumir a sua religião”.

 

 

 

Ataques Virtuais

O crescente número de ataques virtuais a liberdade religiosa contribui para a sensação de retrocesso. Segundo os indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, de 2006 a 2016, a central recebeu 266.528 denúncias anônimas de intolerância de mais de 19 mil páginas. Em 2015, o site mais denunciado foi o Facebook (63%). 

Segundo a Constituição, ninguém pode ser discriminado em razão de credo. A pena para a discriminação religiosa é a reclusão de um a três anos e multa. Para o advogado Juliano Kapp, a legislação ainda é falha. “As leis apenas maquiam uma solução para o problema”, afirma. Já a posição da CCIR é que, apesar de uma legislação rica na defesa da liberdade religiosa, faltam ações preventivas através de políticas públicas .

O sociólogo Rudy Assunção também problematiza a falta de um debate aberto sobre os extremismos religiosos. “Determinadas religiões têm um salvo-conduto, pois delas não se fala. Assim, é mais fácil mascarar o debate pensando só em termos de choques entre nações [xenofobia], o que é redutivo”, explica. Alguns centros de Umbanda em Ponta Grossa já tratam da intolerância e enfatizam a importância de denunciar. “Temos que sempre tomar atitudes para mostrar que existe uma lei a favor de nós, devemos sempre denunciar”, finaliza Rafael Almeida.

 

 

 

 

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