Em 2016, 1.686 famílias foram assentadas no Brasil e, em 2017, nenhuma. A reforma agrária está parada e sem perspectivas de continuidade no governo de Jair Bolsonaro.

“Nos mantermos organizados é o segredo para superar as barreiras que virão”, afirma liderança do MST l Foto: Crystian Kühl

 “Nosso movimento nasceu em meio à ditadura militar. Tempos muito difíceis. Nestes 35 anos de existência, de uma coisa a gente tem certeza: nos mantermos organizados, mesmo com dificuldades, é o segredo para superar as barreiras que virão”. Essa é a avaliação de Célio Meira, pequeno produtor rural do acampamento Maria Rosa do Contestado. Quando questionado sobre o governo atual, Célio não hesita em assegurar que a história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está intimamente ligada às dificuldades enfrentadas historicamente, no Brasil, na luta pelo direito à terra.

Aos 43 anos, Célio Meira é integrante do acampamento Maria Rosa Contestado, localizado na zona rural do município de Castro, e uma das lideranças do MST contatadas pela equipe de reportagem do Portal Periódico. O Paraná é um marco na história do movimento, pois, foi nesse estado, em 1984, durante o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que o MST teve sua fundação consolidada.

Sinônimo de resistência pela consolidação como a principal frente de defesa do direito à reforma agrária, o Movimento, em 34 anos de luta, vê-se ameaçado face à vitória do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), cujas propostas de governo se alinham à extrema-direita.Uma certeza se verifica entre as lideranças ouvidas: se foi em meio aos obstáculos - ainda em 1980 - que o movimento surgiu e se consolidou, é através da luta que ele encontrará os meios de sobrevivência. Para eles, se não for o MST, nenhuma outra categoria irá buscar o retorno das políticas públicas de reforma agrária.

Em 2017, com Michel Temer (MDB, na ocasião, PMDB) na Presidência da República, nenhuma família foi assentada segundo os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em 2016, 1.686 famílias conseguiram um pedaço de terra, o que representou uma redução de 93,5% em relação ao número de famílias que foram beneficiadas com terras em 2015 (26.335). Tais impactos podem ser resultado da Medida Provisória 759, editada por Michel Temer, após o impeachment de Dilma Rousseff (PT). A MP “institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação dos imóveis da União”, o que dificulta a adesão dos trabalhadores rurais ao programa de reforma agrária. Em 2017 foi sancionada a Lei Federal 13.465, que regularizou a MP 759. A MP sinaliza uma tendência de recuo não somente por um governo que demonstra pouca vontade em promover o assentamento de famílias, mas também pela desapropriação de imóveis, que diminuiu consideravelmente. De 2015 até 2018, 26 imóveis foram desapropriados.

Além do poder executivo, o Judiciário também cumpre seu papel. De acordo com o site Brasil de Fato, apoiado em dados do MST, em 2018, foram 150 ações de despejo em todo o Brasil. O Paraná é a unidade federativa com o maior número de processos (80), seguido pelo Pará (23) e por Minas Gerais (11). O destaque do Paraná, com expressivo número de ações, justifica-se pela história do movimento no estado, mas também pela Operação Lava-Jato, como destaca a liderança da frente de massas do MST, Márcio Santos, em entrevista ao Brasil de Fato.  “A presença do MST no Paraná é grande há anos. São mais de cem áreas ocupadas há décadas. Agora, há uma clara movimentação para retomar essas áreas. Muito em função inclusive da truculência judicial, que em Curitiba começou a partir da operação Lava-Jato, que promoveu um verdadeiro atropelo às normas constitucionais”, avalia Márcio Santos.

MST na mira de Jair Bolsonaro

Antes mesmo de ser eleito presidente, Jair Bolsonaro (PSL) já expressava, em público, opinião contrária ao MST e às políticas de reforma agrária. Em comício realizado durante o processo eleitoral de 2018, ele chegou a proferir palavras em tom de ameaça: “Se invadir a minha casa, vai ser recebido com bala”.

Em entrevista dada à RedeTV, também durante o período de campanha eleitoral em 2018, o então candidato afirmou, repetidas vezes, que o agronegócio é o motor que movimenta o Brasil e que, mesmo em época de recessão, os latifundiários garantiam a receita brasileira.
A afirmação de defesa do agronegócio vem ligada a ataques ao MST. “Temos que tipificar as invasões do MST como terroristas”, afirma Bolsonaro em comício eleitoral. Por diversas vezes, em canal próprio do YouTube, o político destacou a promessa de apoio à bancada ruralista no Congresso Nacional, na hipótese de - à época - vir a ser eleito.

Da parceria com o agronegócio - que inclui a promessa de flexibilização das medidas de defesa da biodiversidade e de relaxamento do processo de concessão de licenças ambientais, tal como mostrou o Portal Periódico na reportagem “A raposa tomando conta do galinheiro” - à intenção de criminalização do MST, Bolsonaro tem como um pilar a defesa da propriedade.

O plano de governo de Jair Bolsonaro se ateve ao preceito neoliberal de que a “propriedade privada é sagrada e nada deve interferir nesse direito do proprietário”. No documento, o termo “propriedade” aparece seis vezes, estando associado a “privada”, a “rural” e a “imobiliária”.

A primeira menção se dá logo nos primeiros slides, quando são apresentados os valores e os compromissos assegurados, conforme se observa no recorte do plano de governo: “Os frutos materiais dessas escolhas, quando gerados de forma honesta em uma economia de livre iniciativa, têm nome: PROPRIEDADE PRIVADA! Seu celular, seu relógio, sua poupança, sua casa, sua moto, seu carro, sua terra são os frutos de seu trabalho e de suas escolhas! São sagrados e não podem ser roubados, invadidos ou expropriados”.

Propriedade também aparece na conclusão apresentada no ponto “Segurança e Combate à Corrupção” no qual são apresentadas duas propostas: “tipificar como terrorismo as invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro” e “retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81 [Emenda Constitucional 81]" (Art. 243).

Ao abordar a EC 81, o programa de governo de Jair Bolsonaro sinaliza a intenção de retirar a possibilidade de confisco, com fins de reforma agrária e habitação, de propriedades usadas para a cultura ilegal de plantas psicotrópicas e para o trabalho escravo.

O ex-senador Magno Malta (PP-ES) - um dos mais fiéis aliados de Bolsonaro à época e responsável pela oração realizada numa das primeiras aparições do presidente eleito logo após a divulgação do resultado do pleito, em 28 de outubro - é relator, desde 2016, do Projeto de Lei do Senado (PLS) 272, que prevê modificação da Lei 13.260 de 2016, conhecida como a Lei Antiterrorismo.

Prevista pelo PLS, a alteração do texto se daria no artigo 2º da Lei Antiterrorismo, inserindo, como razão para se tipificar o terrorismo, “outra motivação política, ideológica ou social”, ponto que foi vetado pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016.

Segundo a professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Jeaneth Nunes, a mudança é inconstitucional por ir de encontro com o artigo 5º [incisos IV, XVI e XVII] da Constituição Federal. “O próprio artigo quinto dispõe sobre a liberdade de organização e de manifestação. Criminalizar quem deseja a efetividade das normas constitucionais é um absurdo”, repele.

A função social da terra é descrita no artigo 2º do Estatuto da Terra [Lei 4504 de 1964]. Ainda segundo a professora, a reforma agrária é um direito constitucional e está fundamentada no princípio da função social da propriedade. “Desapropriar qualquer propriedade que descumpra a função social é dever de qualquer governo, mesmo os de direita”, reitera, alegando que essa atribuição dada à propriedade deve estaDaniel Lisboa e Guilherme Bronoskyr submetida aos interesses da comunidade, ambientais, sociais e econômicos.

A reforma agrária está prevista no terceiro capítulo da Constituição Federal. O artigo 184 estabelece que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. No entanto, desde 2015, o número de famílias beneficiadas pela reforma agrária começou a cair drasticamente.

Quando questionado sobre os desafios enfrentados pelo MST face ao encolhimento das políticas públicas de reforma agrária, o advogado do Movimento em Ponta Grossa, João Stefaniak, afirma o papel político do grupo em momento nebuloso do cenário nacional. “O MST vai ter que resgatar a sua combatividade. Ele nasceu durante a ditadura militar e foi participante ativo no processo de redemocratização. Esse é o caminho para passar pelo período que está por vir”, avalia.

 

41475482634_d2aaedc54a_o.jpg
28323836658_2475d2346a_o.jpg
28323836738_6755dea4fc_o.jpg
40389698620_c047b85432_o.jpg
Previous Next Play Pause
1 2 3 4


MST: “Brasil tem cerca de 150 mil famílias acampadas”

Desde os anos 1980, quando foi fundado oficialmente, o MST passou a se destacar por sua função política no processo de implementação de políticas públicas voltadas à reforma agrária. Os acampamentos surgem como uma forma de reivindicar, por meio de ocupações, a posse da terra. O objetivo é pressionar o estado na desapropriação de terras improdutivas.

De acordo com levantamento do Incra realizado em 2015, há cerca de 83 mil famílias acampadas no país, sendo aproximadamente 5 mil somente no Paraná. Em entrevista ao Brasil de Fato, em julho de 2018, Kelli Mafort, membro da coordenação nacional do MST, afirmou algo diferente: “nós já temos no país 150 mil famílias acampadas e esse número é muito grave”.
Para a militante, o dado reflete uma situação preocupante no país “porque mostra uma estagnação na política de reforma agrária e no atendimento concreto na pauta dos trabalhadores, que chegam a ficar 10, 15, até 20 anos embaixo de lona lutando por um pedaço de chão, que é uma coisa que está prevista na Constituição brasileira”.

O acampamento Maria Rosa do Contestado, localizado em Castro, foi fundado em 2015. Nos três anos de existência, o grupo já tem produção própria e uma organização interna definida. Antônio Soares, 52 anos, mais conhecido como Toninho, está no Maria Rosa desde o começo. Além de produzir e cuidar da própria horta, o agricultor também ajuda os que estão aprendendo a lidar com a terra.

“Hoje minha luta é ajudar na organização do acampamento. A gente passa as orientações tanto produtivas como disciplinar”, relata. “Na medida do possível, procuro sempre manter as famílias bem para que elas se sintam felizes sem aquela exclusão que existe na cidade. Aqui, todos são iguais”, defende.

A participação no MST começou em 2002, pela falta de opção de trabalho na cidade. Hoje, Toninho mora com a mãe e acaba sendo uma referência para todos do acampamento. Para o pequeno agricultor, que se dedica sobretudo ao cultivo de arroz, feijão, milho e hortaliças, os 16 anos de movimento ensinaram que a luta do MST não é só por um pedaço de chão, mas por uma nação.

Ainda na adolescência, Célio Meira conheceu o MST. “Aos 15 anos, não teve jeito, tive que me inserir na luta”, relembra. “Quando tive o primeiro contato com o movimento, pude observar que aquele povo, tão sofrido e mal falado, tinha o que nós não tínhamos: comida e muita fartura. E era um povo esclarecido quanto às obrigações que o Estado deve ter para com os trabalhadores”, avalia hoje, aos 43 anos.

O pequeno agricultor, apesar da aparência simples, guarda uma longa trajetória de experiência junto ao MST em sua fala. Sobre o passado, conta que a família foi beneficiada com um lote no assentamento no distrito de Abapã, no município de Castro, logo no primeiro acampamento que participou em 1992.

Meira descreve que a vida em um acampamento não é fácil já que ele resulta de um movimento de ocupação. O militante relembra o quão desgastante é até o momento em que a família de agricultores recebe o lote. “Quando vira assentamento, a gente se acomoda e não quer nem saber de se envolver de novo em acampamento”, revela ao lembrar o momento em que viveu, junto aos familiares, em barracas de lona instaladas em terreno de chão de terra, sem água encanada e energia elétrica.

Apesar disso, aos 39 anos, com uma visão mais crítica e ampla do movimento, ele resolveu participar da direção política do MST. Quando ficou sabendo da ocupação da Fazenda Capão do Cipó, em Castro, decidiu que era hora, tendo em vista a maturidade e a experiência no assentamento, de apoiar e contribuir. “Foi a oportunidade de poder cuidar da imagem do nosso movimento”, relata.

Uma das iniciativas de que Meira se orgulha de ter participado é da organização da “1a Feira da Semente Crioula” . O evento aconteceu em agosto de 2018 no acampamento Maria Rosa do Contestado, em comemoração aos três anos de resistência. As sementes crioulas fazem parte da cultura camponesa originária e da agroecologia.

Pela decisão de trabalhar com as sementes crioulas, os pequenos agricultores do MST (entre eles, há 168 produtores do Maria Rosa) são conhecidos com guardiões das sementes. Elas não são vendidas, mas são trocadas por sementes também crioulas de outros produtores do Movimento.
“Tudo que foi consumido aqui, foi produzido aqui, no acampamento mesmo”, afirmou Meira por ocasião da comemoração do aniversário do acampamento, quando foi realizada a Feira. Meira destaca que a iniciativa promove não somente práticas que preservam a biodiversidade, mas também os bons resultados da prática associativista do MST e da importância da luta pela reforma agrária.

“Foi quando conheci o MST”

O assentamento Celso Furtado, em Quedas do Iguaçu, conta com o Colégio Estadual do Campo Chico Mendes, localizado dentro do assentamento. A professora de história Barbara Nagae relata que teve o primeiro contato com o MST quando atuou na escola.

A surpresa foi que ela aprendeu à medida que ensinava com os alunos do movimento. Para a professora, o senso de responsabilidade e de cuidado com a coletividade, experimentado no dia a dia com as crianças e os adolescentes, a formaram e, por isso, ela hoje afirma ter se tornado uma “sem terra”.

Mesmo com a pressão do atual governo e as dificuldades vivenciadas por muitos pequenos agricultores para se manterem na terra, os motivos que levam os assentados a entrarem no Movimento são vários. Entre as lideranças contactadas, elas citam o desemprego nos centros urbanos, o descaso do poder público pela periferia e o interesse pela vida campesina.
O desemprego foi apontado por Genecilda Lourenço, mais conhecida como Dona Gê no acampamento Emiliano Zapata, situado na zona rural de Ponta Grossa. Viúva e desempregada, em 2003, ela se viu sozinha com a missão de criar os sete filhos na periferia de São José dos Pinhais.

“Foi quando conheci o MST”, relata. “Entendi, naquele momento, que eles pegam pessoas que estão completamente abandonadas e tratam como sujeitos, como indivíduos que têm opinião e podem opinar”, descreve Dona Gê. Hoje, aos 66 anos, toda semana ela é responsável por distribuir os produtos orgânicos do Emiliano Zapata em pontos de venda em Ponta Grossa, como na UEPG. Além das bancas de feiras, há a entrega da sacola agroecológica que, organizada pela Rede de Mulheres Produtoras em Agroecologia Emiliano Zapata, reúne produtos da estação.

A rotina de Dona Gê é bem apertada. Todos os dias, ela acorda cedo. Às 5 horas, ela já está de pé alimentando os animais e cuidando das verduras. Antes de sair em direção à cidade para vender as hortaliças nas feiras, ela deixa preparada a refeição da família. Tudo isso sem deixar de lado o papel de liderança junto à Rede de Mulheres Produtoras e de uma Brigada (que reúne 500 famílias).

Embora esbanjando vitalidade e espírito de liderança, a produtora revela que só quer terminar o mandato para, então, fazer apenas o que ela mais gosta. “Só quero cuidar das minhas verduras”, afirma com o sorriso, que é a marca da Dona Gê. Ela conversava com a equipe de reportagem do Portal Periódico ao mesmo tempo em que atendia um cliente na feirinha da UEPG, revelando a preocupação em arrumar alguém para cuidar das suas plantinhas já que, no dia seguinte, iria viajar para Quedas de Iguaçu, onde participaria de última reunião como líder de Brigada.

De acordo com o Incra, no Brasil, atualmente, existem 9.455 assentamentos, sendo 329 somente no Paraná. Diante do retrocesso da política pública, João Stefaniak acredita que, assim como o MST teve um papel importante nos anos 1980 para a inclusão da reforma agrária na Constituição Federal, no atual cenário político brasileiro de avanço da extrema-direita, a missão do movimento continua. Para o advogado, cabe aos militantes resgatar a bandeira da reforma agrária com um novo formato, incluindo nela os princípios da preservação ambiental e da agroecologia.

Os assentamentos são regularizados pelo Incra. As áreas desapropriadas e destinadas à reforma agrária são divididas em lotes e cada um destes é destinado a uma família. As terras, cujo valor é pago pelos assentados, devem ser utilizadas para agricultura familiar e não podem ser vendidas ou arrendadas.

Dentro de cada assentamento do MST, as funções são divididas a partir de coletivos, sendo que cada um deles tem uma função própria. Os de educação, por exemplo, fazem a negociação com o município e com o Estado. O objetivo é que sejam formadas as escolas de educação básica dentro do acampamento. Outra opção é a oferta de transporte público para levar as crianças e adolescentes até o estabelecimento de ensino mais próximo.

Ficha Técnica:

Produção: Daniel Lisboa e Guilherme Bronosky
Edição: Hygor Leonardo e Fabiana Manganotti
Foto: Saori  Honorato / Arquivo Lente Quente
Supervisão: Professoras Angela Aguiar, Fernanda Cavassana e Helena Maximo