Professsor Paulo Mello critica formulação das reformas de base curricular
A iniciativa do Governo Federal de padronização dos currículos do ensino infantil e fundamental I e II, através da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e de reforma do ensino médio têm sido alvo de críticas por parte de especialistas, professores e estudantes. O descontentamento resulta da falta de participação da sociedade e do teor mercadológico mudanças previstas.
A BNCC do ensino infantil e fundamental I e II começou a ser discutida, em âmbito nacional, no ano de 2014. O objetivo era a padronização curricular, nesses níveis do ensino, em todo o Brasil. O documento definitivo, com quase 400 páginas, foi organizado, normativamente, para ser referência curricular em todos os colégios públicos e privados.
Em dezembro de 2017, houve a homologação do documento, após cinco audiências públicas regionais e sua votação pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Dos 22 votantes, apenas três foram contrários à efetivação do documento.
A BNCC do ensino médio também passou por audiências públicas regionais no decorrer deste ano e, segundo nota do Ministério da Educação, após aprovação do CNE, deverá ser homologada até o final deste ano.
Segundo Paulo de Mello, doutor em Educação e professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o processo de elaboração da BNCC não envolveu “os sujeitos que atuarão no currículo”, e por isso ela está fadada a fracassar.
Além das audiências públicas, o Governo Federal fez consultas via internet e seminários regionais, com a justificativa de tornar a elaboração mais próxima da população e dos professores. Para Paulo, isso não foi suficiente, pois “você não faz um currículo apenas com consultas informais via internet”. O professor critica a metodologia utilizada em que foi aplicado questionário fechado que, segundo ele, não permite o levantamento de questões qualitativas.
Ensino Médio: articulação política
A reforma no ensino médio começou a ser construída, em 2014, num debate paralelo, e dois anos depois, foi articulada às discussões da BNCC do ensino infantil e do ensino fundamental I e II. Isso acelerou e aprofundou o viés tecnicista que já caracterizava o ensino médio.
O texto que dá base à BNCC do ensino médio foi apresentado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) em abril deste ano. A proposta de currículo para o ensino médio descaracteriza o ensino, segundo o doutor em Educação Jefferson Mainardes, professor do Departamento de Educação da UEPG. “Os alunos não têm mais total acesso às disciplinas convencionais e ao conhecimento universal”, crítica.
O que pode se configurar no ensino médio é a possibilidade de existir um currículo com “itinerários”, a partir dos quais o aluno poderá optar por uma das quatro áreas de conhecimento: Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Ciências da Natureza, Linguagens e Matemática. Caso a reforma seja aprovada, haverá uma grade 60% obrigatória e, para o restante, o estudante poderá escolher de acordo com sua preferência. Haverá ainda a modalidade de ensino à distância (EAD) que, na opinião de Mainardes, “representa um verdadeiro esfacelamento do ensino médio”.
Há ainda a possibilidade de o aluno escolher a formação técnica e profissional, voltada ao mercado de trabalho. O professor Paulo de Mello critica o fato de o currículo profissional e técnico cometer o grave erro de preparar “para um mercado que é uma aposta, totalmente mutável e dinâmica”. Mello destaca que “o Brasil se vê refém de uma ideia equivocada que subordina jovens a tipos de trabalho que não vão existir daqui três anos”.
Segundo o professor, desde que o governo do PT assumiu o poder, há 15 anos, houve um visível crescimento da valorização do ensino técnico no país. Porém, como destaca Mello, as formas de organização contavam, quando o partido ainda ocupava o Governo Federal, com “desenvolvimento, infraestrutura, corpo docente e um estudo específico”.
A tecnicização se intensifica e toma um novo direcionamento quando o governo de Michel Temer (PMDB) assume a presidência, em 2016, e passa a agir na tentativa de extinguir o modelo curricular instalado pelos governos anteriores e a segmentar o currículo que valorize a técnica. “O atual governo sequestra a oportunidade de o jovem ter contato com a cultura humana mais ampla, que é uma graduação”, complementa Mello.
A reforma da Base atraiu grandes grupos da educação privada do país cujo interesse, no projeto, acabou reforçando a hegemonia de uma diretriz que supervaloriza o ensino técnico e necessidades do mercado. O interesse econômico nas reformas da educação pode ser identificado se considerado que o documento da BNCC, homologado no ano passado foi apoiado por instituições privadas como Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Instituto Unibanco e pelo Banco Mundial, segundo informações da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Para a doutora em Educação e professora da UEPG, Rosana Casagrande, muitos são os riscos à educação dentro da BNCC, entre eles, estão “o esvaziamento do sentido do currículo, o atendimento à lógica do mercado, a empregabilidade e a imposição de conhecimento técnico como parâmetro para avaliações em larga escala.”
Mudanças da BNCC já homologada para o ensino infantil e o fundamental I e II
A principal mudança é que as escolas ficam obrigadas a construir o currículo seguindo orientações previstas no documento nacional. Nessa perspectiva, todos os alunos estarão em contato com as mesmas abordagens dentro da sala de aula. Anteriormente, as escolas e os professores podiam participar, com maior autonomia, da construção curricular, pois seguiam diretrizes que eram de âmbito municipal e estadual.
Rosana Casagrande afirma que o documento é “mais agressivo no sentido da imposição” de um modelo nacional que não respeita as diversas realidades do cenário educacional brasileiro, como, por exemplo, educação do campo, de povos ribeirinhos, quilombolas e indígenas.
Para o professor da UEPG, Jefferson Mainardes, as mudanças que a BNCC trouxe para a educação, no Brasil, são um retrocesso, pois dividem a educação em uma lista de conteúdos que “já foi superada há muito tempo” e nada tem a ver com políticas educacionais de países que atingiram um desenvolvimento educacional pleno. Na visão do professor, é tradicional e ultrapassado dividir os conteúdos em habilidades e competências (ver infográfico).
Outra mudança significativa que a Base trouxe para a educação brasileira foi a antecipação da alfabetização. Enquanto anteriormente os alunos deveriam estar alfabetizados até o 3º ano do ensino fundamental (oito anos), agora a Base prevê que a alfabetização seja feita no 2º ano (sete anos). Seguindo sugestões do Ministério da Educação, a BNCC excluiu também tudo que fosse relacionado a questões de gênero e de orientação sexual. Em contrapartida, passou a obrigar a oferta da disciplina de ensino religioso, embora a matrícula pelo estudante seja facultativa.
A estudante de Pedagogia na UEPG, Bruna Reis, que estagiou em colégios municipais da cidade, a formulação da Base impõe seguir um currículo fechado como uma “camisa de força”. ”Ele [o currículo] foi padronizado por pessoas que não conhecem o contexto de cada escola, não leva em consideração a particularidade e a vivência de cada indivíduo”, descreve. “Não me sinto contemplada com a forma de elaboração.”
Luta e resistência marcam os movimentos de adequação à Base
O Ministério da Educação vem lançando formas de pressionar adaptações ao currículo, como, por exemplo, o “Dia D”, que é uma forma de promover uma discussão em nível nacional sobre a estruturação e as competências exigidas pela Base. O governo pede contribuição das secretarias estaduais de educação, bem como dos núcleos municipais e de toda comunidade escolar, para colaborar com o processo. Por exemplo, no último dia dois de agosto, as aulas das escolas públicas do Brasil foram suspensas para o debate sobre a Base. Alunos de colégios particulares também foram convidados.
Para o professor Jefferson Mainardes, as escolas que já tiverem propostas curriculares devem resistir às adaptações. “As redes com currículos já elaborados precisam continuar com suas propostas”, sugere. No entanto, o professor reitera a característica impositiva da proposta. “Com o atrelamento da BNCC às avaliações nacionais, as escolas serão pressionadas a adotar a proposta”, critica.
A conclusão é uma opressão ao professor, que não tem possibilidade de negociar com alunos sobre demandas e necessidades de cada grupo. “O currículo vem como um rolo compressor e precisará haver efetivamente espaços de resistências coletivas e democráticas, que cabe à escola instituir, requerendo sua autonomia pedagógica”, conclui Mello.
A crítica vem também dos alunos de ensino médio. Para a presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umesp) de Ponta Grossa, Camila Martins, a maior problemática a ser discutida no debate sobre a reforma no ensino médio é a maneira como ela se apresenta. “Entendo que precisamos, sim, de reforma no nosso sistema de ensino, mas ela deve ser feita por pessoas qualificadas para isso e deve disponibilizar educação pública, gratuita e de qualidade para todos”, reivindica.
A falta de estrutura e a perda do poder de decisão são outros problemas encontrados no percurso da aceitação do documento. “Além de não fornecer estrutura alguma, a reforma dá impressão de liberdade, mas acaba por retirar matérias essenciais da grade e por afastar o estudante do saber”, conclui.