“O ponta-grossense se viu ali: essa é a minha identidade. Esse livro sou eu”, relata Bowles

EntrevistaHein 29 10 2019

LIvro que retrata a linguagem coloquial de Ponta Grossa foi publicado pela primeira vez em 2009 | Foto: Emanuelle Soares

 

No escritório de sua editora, o escritor Hein Leonard Bowles conversa tranquilamente sobre Jacu Rabudo, obra de sua autoria em que retrata a linguagem coloquial em Ponta Grossa. Prestes a completar 10 anos da publicação no final deste ano, Bowles relata com ânimo o processo de produção da edição até chegar à quarta edição em 2015. Cheio de histórias e com 72 anos, o escritor nasceu na Holanda, mas desde os 9 anos mora em Ponta Grossa. Bowles possui um casal de filhos, duas netas e, no início deste ano, perdeu a esposa. Formado em Letras pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde também atuou como professor até a aposentadoria. Atualmente, Bowles trabalha exclusivamente com sua própria editora, atividade que afirma desempenhar com muita satisfação. Em quase uma hora de entrevista com o escritor, nota-se a importância das quatro edições para a história da cidade, embora ele deixe bem claro que não fará um segundo volume.

 

Queria que o senhor falasse sobre o processo de produção do livro.


R: Fui professor de Língua Inglesa do departamento de Letras da UEPG. Sempre gostei de estrutura das metáforas e expressões idiomáticas. Inclusive a minha tese do doutorado foi feita sobre este tema. Em determinado campo, comparando Inglês e Português. Sempre gostei desse tipo de coisa. Quando inventava de estudar outra língua, as coisas que mais me interessavam eram as metáforas, as metáforas cristalizadas, as expressões idiomáticas. Um dia me chegou às mãos um trabalho de um jornalista formado pela UEPG e que ainda era estudante. Chegou um trabalho feito em folhas chamex, dobrada e com oito folhas ao todo. Ele deu o nome deste trabalho de “Vocabulário Ponta-grossense: um glossário com o melhor do léxico de hoje, já hoje e sempre”. Ele aproveitou a brincadeira do “já hoje”, uma expressão muito regional. Li, falei com ele e, no final, eu já lidava com isso. Pensei uma pesquisa com bastante pessoas, vamos achar mais coisas em nível regional. Vou fazer uma pesquisa sobre isso. Levei uns cinco anos pesquisando. E o que é pesquisar? É você falar com diferentes pessoas e não dizer que está fazendo este trabalho e, sim, quando a pessoa falar alguma expressão que você acha, que você suspeita que possa ser regional, então toma nota. Dizer que está entrevistando a pessoa, isso a inibe, eu nunca fiz isso.


Você vai numa farmácia, num supermercado, você vai conversando com as pessoas. Além disso também fui fonte, porque eu moro em Ponta Grossa desde os 9 anos. Fui piá aqui em Ponta Grossa. Muita coisa veio de mim mesmo. Fui pesquisando. Eu tenho um grupo de pessoas as quais eu consultava, de alguns amigos e professores. Cada expressão ou palavra passou por um processo de seleção, de triagem, falando com outras pessoas. “Você conhece sim? Quem usa?”, “A minha vó usava!” Tudo isso eu tomava nota e depois olhava em dicionários convencionais e dicionário de palavras regionais, dicionário do nordeste, dicionário da ilha de Santa Catarina, dicionário do caipiracicabano e por aí vai. Você vai procurar em todas essas fontes também para ver se a expressão está lá. Então se faz um processo assim. O resultado é interessante, até um pouco divertido, mas o procedimento, como dizem por aqui, é serviço para ‘preso’. Porque é muito, você toma nota de alguma coisa, aí vai, consulta cada palavra ou expressão. Se faz um artigo ou se faz todo o histórico. Conhece esse, não conhece, até digamos cada palavra ou expressão chegar a se ler ganhar o código. Comigo é um processo longo. Fiz a coisa do ponto de vista científico e mesmo assim a linguagem é fluida. Não pode dizer isso é 100% certo. Fui até onde pude. Mas é um trabalho de caráter científico e fui fazendo isso durante cinco anos. Claro, trabalhava, mas quando podia, eu fazia as coisas. Levou cinco anos, mas no final de 2009 eu publiquei o livro.

Por que o senhor preferiu fazer em forma de diálogo ao invés de dicionário normal?


Tenho uma experiência muito ruim com um livro que publiquei, que é um livro por sinal, modéstia parte, bastante interessante para quem gosta de expressões idiomáticas, que se chama Arqueologia da Raiva e do Entusiasmo. Peguei os conceitos de raiva e entusiasmo e fui saber quais são as fontes das expressões que tratam disto. Mas ficou um título (eu não queria), mas ele não é convidativo. Com base nesta experiência, pensei: “Tenho que fazer uma capa de livro que chame atenção, que seja divertido ou que, pelo menos, a pessoa “Opa, o que é isso? Parece um jacu na capa”. Então vai aparecendo. Pensei: “Tenho que pegar uma expressão que se usa aqui”. Ou seja, você conhece “Ele está se metendo jacu rabudo”. Ele está se intrometendo onde não deve. Isso é ser Jacu Rabudo. Por sinal eu fui vendo expressões e tudo mais, mas eu me fixei nesta. O título vai ser esse!


Tenho um amigo chamado Elio Chaves, que lida com arte e que acabou fazendo a capa do livro. Tinha que ter uma coisa que chamasse a atenção. Por sinal, esse termo não é inteiramente regional. Ele é usado aqui, mas também em Santa Catarina. Então pensei: “Tenho que fazer alguma coisa que tenha algum apelo, algum chamamento”. Então saiu o tal do Jacu Rabudo, a linguagem coloquial de Ponta Grossa. Esse meu amigo fez as capas e foi assim.

EntrevistaHein Livro 29 10 2019

 

Como o ponta-grossense reagiu ao livro?


Tinha uma expectativa de que fosse razoável. Não sou de natureza otimista. Primeiro decidi: “Tomara que seja uma coisa decente e que as pessoas gostem”. O que notei é que o livro acabou fazendo o seguinte: o ponta-grossense se viu ali. “Essa é a minha identidade, esse livro sou eu”. Digamos que ele conseguiu congregar essa coisa de sentimento de pertencimento. Ele se sentiu representado. Foi uma reação na época.


Eu sou uma pessoa bastante caseira e não sou de grupos, muito na minha. Mas na época apareci em toda a parte e até me animei. Foi uma experiência interessante, era uma chamada aqui outra lá e até as vezes na rua alguém, até hoje que faz 10 anos, alguma coisa ‘o Jacu’. Até na época veio muita gente me procurar: “Você viu aquela expressão? Minha vó usava” Aquela coisa toda. Digamos, eu não quero ser pretensioso, mas Ponta Grossa não precisaria ser representada pelo cálice da Vila Velha. Tem o livro também. Se alguém chega aqui, vem em um congresso, ver um familiar ou algo assim, não precisar dar um cálice para a pessoa para representar Ponta Grossa, o livro fala da cidade. Também fiquei sabendo que o livro foi mandado para vários lugares do mundo.


Se você pegar um livro de expressões regionais, eles são todos em verbetes, determinadas expressões, usadas para tal, tudo em ordem alfabética. Pensei: “Tenho que fazer algo mais dinâmico”. Foi pensando, trocando ideias com outras pessoas e cheguei na seguinte fórmula: “Vamos fazer unidade de pessoas conversando, como se diz por aqui, prozeandinho”. Mas como você vai separar isso por uma questão semântica, deu um trabalho do cão. Mas se você for ver aqui no livro e pegar o primeiro capítulo “Deu aio!”, nesta unidade você tem pessoas falando em problemas. O que eu fiz? Fiz por unidades semânticas. O primeiro capítulo fala de problemas. Depois “Não tem sabugo que tape” descreve problemas sem solução. “Muito bem carçado” que é o terceiro, fala de dinheiro. “Tudo escafiotado” é sobre coisas que estão estragadas. Fiz esses títulos e fiz as pessoas conversarem. Tem uma organização. Você tem que fazer 20 ou 30 unidades, senão ia ficar tudo esparso. Mas verbete eu me recusei a fazer pois tinha que ser mais dinâmica, mais limpo. E isso chamou atenção. “Buenarada” é de pessoas se cumprimentando. A respeito de morrer é o capítulo cujo o título “Secou a quirera” , só para dar uns exemplos. Tem um “Home é tudo jaguara” que dialoga com os relacionamentos. Deu bastante trabalho. O resultado, às vezes, me parece leve e pode ser um pouco divertido. Até um amigo me falou um tempo atrás do livro: “Sabe onde que fica o livro da minha casa? No banheiro. Você abre em qualquer parte e lê”. Ele não tem compromisso de sequência.

 

Por que na visão do senhor o sotaque carioca é mais valorizado do que o sotaque regional e do interior?

Você entra na questão do prestígio. Isso tem em qualquer país, a versão ou norma. Aqui é o sotaque, o jeito de falar e é assim o carioca. Muitas vezes, quem quer se meter de Jacu Rabudo fala meio ‘carioquês’ porque dá um ‘tchan’ pelo menos na cabeça das pessoas. Essa questão do sotaque é interessante. Sou muito observador nesta questão, a linguagem que as pessoas usam. Tive a oportunidade inclusive de observar em alguns momentos uma pessoa dirigindo uma reunião, apresentando algo importante na universidade e, de repente, mudava o sotaque. A pessoa pode nem perceber e, do nada, ela começa. Isso está na cabeça de que daria mais valor. Muito relativo e nada ver.

EntrevistaHein charge 29 10 2019

Para o senhor, essa linguagem mais coloquial está morrendo ou desaparecendo?


Uma das minhas fontes era um senhor aqui, já falecido. Ele meio que se desculpava para falar e era uma coisa muito rica. Porque a metáfora é uma coisa extraordinária. Você fala de determinado assunto usando o campo e a atividade que é completamente diferente nas associações. Disso pode sair coisas muito interessantes, muito bonitas e muito criativas. Então vai se perdendo. Também pertence a outras gerações muitas expressões que estão morrendo. Isso não quer dizer que tenhamos perdido nossa capacidade de criar. Mas o que é criar neste sentido? É criar uma metáfora. Você fala uma coisa de maneira engraçada e cria uma expressão. Em algum momento alguém faz isso. Se ela é interessante, outros acabam usando e acaba se tornando convencional. Esse processo de criação continua e sempre vai ter expressões novas. Mas acho que cada vez menos. A lavoura está todo mecanizada. O pessoal que trabalha em fazenda tem equipamentos de última geração, de informática, de tudo. Onde também se comunica com todo mundo. Hoje em dia você não vai encontrar alguém que diga “ah, vá fuçar banhado” que antigamente se usava para “ah vai tomar banho”. A criação hoje é confinada e uniformizada. Mas a capacidade criativa de criar coisas novas? Continua! Porque essa coisa rural e local que ficou por sei lá quantas dezenas, quantas décadas, isso aí tende a desaparecer.

Ficha Técnica
Reportagem: Emanuelle Soares
Edição: Thailan de Pauli Jaros
Foto: Emanuelle Soares
Supervisão: Professoras Angela Aguiar, Ben-Hur Demeneck, Fernanda Cavassana, Hebe Gonçalves, Rafael Kondlatsch

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