Tabu persiste embora justiça autorize cultivo da maconha para uso medicinal

Plantio doméstico é uma alternativa para baratear o tratamento de doenças neurológicas com o cannabidiol

Para o cultivo caseiro da cannabis, o paciente precisa de autorização judicial Foto: Free Images

Em junho de 2018, uma curitibana (cuja identidade será preservada) conseguiu, na Justiça Estadual do Paraná, a autorização para plantar maconha e manuseá-la no tratamento de sintomas causados pelo tumor benigno que possui no cérebro. O advogado Aknaton Toczek Souza explica que, embora a substância seja proibida pelo artigo 16 da Lei Federal nº 6.368 de 1976, a própria lei estabelece a possibilidade de uso para fins medicinais e científicos.

Em maio de 2017, a cannabis entrou para lista das plantas medicinais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No mesmo ano, o órgão do Governo Federal lançou uma nota técnica explicando não ser contra o uso da cannabis para fins medicinais e citando ainda a possibilidade de uso para pesquisa.
Mesmo a cannabis integrando o roll de plantas medicinais reconhecidas pela Anvisa, para um paciente conseguir cultivá-la com a finalidade de consumo próprio e com fins medicamentosos, há a necessidade de um habeas corpus preventivo.

O uso medicinal da maconha ainda não é legalizado e não há uma legislação que atenda de modo coletivo a população. Dessa forma, a liberação para o tratamento, como descreve Aknaton, apenas acontece quando a doença tem um grau muito severo, representando risco à vida do paciente. Caso contrário, o indivíduo mantém o tratamento convencional à base de químicos. Há ainda quem opte pela ilegalidade, assim como fez a curitibana, até conseguir o habeas corpus.

Segundo Aknaton, a exigência é “para que o indivíduo não seja preso por ter as plantas em casa, uma vez que é ilícito” cultivá-la na própria residência. O advogado ainda explica que cada caso deve ser tratado em sua individualidade com uma justificativa muito própria a respeito do tratamento.

A engenheira Maria Aline Gonçalves, militante da causa da legalização da maconha, é mãe de Victor. O filho, um adolescente de 12 anos, é autista e tem epilepsia. Em função disso, há dois anos e meio, ele está em tratamento com o uso do óleo de canabidiol, substância extraída da maconha. Segundo Maria Aline, após o início do uso da substância, as convulsões estão mais controladas e acontecem com menos frequência.

No caso de Victor, a família conseguiu a liberação para utilizar o óleo através da Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace). Maria Aline explica que outorgou uma procuração, em nome do filho, para a entidade, que é licenciada para produzir o canabidiol.

A Abrace é uma das organizações que auxilia as famílias no tratamento com o óleo da maconha. A atuação da entidade começou há quatro anos e, desde então, ela oferece assessoria e orientação médica para famílias que ainda não tomaram conhecimento do uso terapêutico da cannabis. A associação extrai o óleo e produz o remédio e, em seguida, encaminha para as famílias associadas a dose recomendada e orientada pelo médico.

A engenheira Maria Aline ressalta que, embora o processo de liberação junto à Associação tenha sido demorado e difícil, na ocasião, com “o primeiro aval [decisão] do juiz, foram 150 famílias beneficiadas no Brasil todo”.

Embora mais barata, produção caseira pode gerar riscos

A doutora em farmácia e professora da UEPG, Stella de Bortoli, explica que o canabidiol é uma substância agonista. Portanto, seu estímulo é provocado por uma resposta. Para explicar o funcionamento do canabidiol no corpo, a farmacêutica descreve que ele funciona como a chave na fechadura.

“Temos várias fechaduras nas nossas células que são os receptores e, às vezes, existem moléculas que entrarão ali e servirão como uma chave, provocando um efeito dentro da célula”, descreve. Stella de Bortoli esclarece que o que trata as enfermidades não é a maconha em si, mas as substâncias que são encontradas na flor dela, o canabidiol.

A curitibana, mencionada no início desta reportagem, foi submetida, por quatro anos, a tratamento em modo convencional à base de químicos. Isso implicava na ingestão, diária, de oito medicamentos. Em função dos vários efeitos colaterais, ela decidiu buscar tratamentos alternativos e, com o consentimento do médico, encontrou, na maconha, aquele que considera ideal, por ser natural e não trazer os mesmos efeitos colaterais dos demais medicamentos.

Antes de conseguir o habeas corpus preventivo, a curitibana obteve a autorização da Anvisa para importar o óleo da maconha. Porém, o custo mensal do medicamento era de R$ 2 mil, tornando-se inviável economicamente. Sendo assim, ela optou por produzir em casa, pois seria mais viável.

A equipe de reportagem do Portal Periódico tentou, junto à fonte, obter informações sobre os custos da produção independente, mas, em função da repercussão do tema, após a divulgação pela mídia, a entrevistada preferiu manter a privacidade e não expor detalhes do processo de produção e uso do medicamento.

O uso medicinal da maconha ainda é um assunto muito delicado no Brasil e, por isso, apesar de não ser possível quantificar o número de pessoas que utilizam efetivamente a cannabis para tratamento terapêutico, justamente porque não querem ser identificadas, o advogado Aknaton Toczek Souza confirma que em Ponta Grossa existem muitos casos. Mas por segurança, muitos pacientes preferem não revelar que fazem uso medicinal da maconha.

Para a farmacêutica, Stella de Bortoli há riscos em produzir o óleo da maconha porque, ao realizar o processo artesanal, pode ser extraído mais THC, que é o principal componente ativo da maconha e afeta a maneira como funciona o cérebro, e o sistema nervoso de um modo geral. E, por outro lado, pode ser retirado menos canabidiol, que é a substância que trata as patologias.

Stella destaca que isso pode acontecer “por causa da falta de controle da concentração dos compostos”. Ainda segundo a farmacêutica, nem todas as substâncias da planta são interessantes para o tratamento das enfermidades neurológicas, psicológicas, entre outras. Cada uma delas, destaca Bortoli, possui uma ação diferente no corpo humano.

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