Durante a pandemia, na cidade e no país, mulheres lideram estatísticas de violência


Faltando pouco mais de um mês para o final do ano, os registros de violência contra crianças aumentaram 235% em relação a 2021: são 720 denúncias contra 310, no ano passado, segundo o Conselho Tutelar de Ponta Grossa. O conselho alerta que o número pode ser ainda maior porque, com as escolas fechadas durante a pandemia, perdeu-se uma fonte de denúncias.
Em âmbito nacional, também houve crescimento da violência. De janeiro a setembro de 2021, mais de 119 mil denúncias de violações aos direitos de crianças e adolescentes foram registradas em todo o país. Deste total, 40.822 ocorreram dentro de casa e a principal figura agressora é a mãe das crianças, com mais de 15.200 denúncias. Pais, madrastas, padrastos e outros familiares totalizam 10.161 denúncias.
O levantamento é do canal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), órgão ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e foi feito com base nas informações do Disque 100.

 

CRIANÇA 1 Amanda Dombrowski

Durante a pandemia, crianças ficaram mais expostas a violência. | Foto: Amanda Dombrowski

 

Segundo a psicóloga Simone Sanson, do Núcleo de Proteção da Criança e do Adolescente Vítimas de Crimes (Nucria), o padrão nacional se repete na região dos Campos Gerais. No âmbito geral, Sanson relata que o perfil de mães agressoras abrange principalmente mulheres jovens, com dificuldades em manterem-se em empregos fixos que exigem disponibilidade para o trabalho em casa, além das que possuem mais de um filho. “A essas mães não muito mais velhas que os filhos, que muitas vezes vivem em lares disfuncionais, falta paciência e até maturidade para perceber os efeitos dessa violência que usam como medida imediata de correção e educação.”
A psicóloga diz que os efeitos das violações podem adquirir conotações inesperadas. “A tendência é que, quanto mais a criança apanha, mais rebelde e difícil de educar ela se torna”. Sanson ainda frisa que os casos de violência denunciados ao Nucria independem de questões socioculturais e econômicas. “A violência contra crianças ocorre em todos os setores da sociedade atual.”


Perfil das vítimas
Segundo relatório do primeiro semestre, o Centro de Referência Especializada de Assistência Social II (CREAS II) de Ponta Grossa, atendeu 27 casos de violência intrafamiliar. Segundo a coordenadora Bruna Watanabe, o perfil de crianças que sofrem com violência é muito amplo. “Normalmente elas são de famílias em vulnerabilidade, onde a mãe é obrigada tomar conta de muitos fatores sozinha e acaba sobrecarregada”.
O histórico das famílias também interfere no nível de violência empregado pelas mães. “Muitas vezes a mãe foi uma mulher vítima de violência, até do próprio marido, ou residem em ambientes onde há pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas.”
Segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 2015, no Brasil 28,9 milhões de famílias são chefiadas por apenas uma mulher. O Conselho Nacional de Justiça, com base no último Censo Escolar divulgado, aponta também que cerca de 5,5 milhões de brasileiros não têm o nome do pai no registro de nascimento.


Psicologia
A psicóloga Dayane Nowakowski Machado, especialista em comunicação não-violenta e atendimento ao público feminino, comenta que os dados refletem apenas a superfície de problemas que são estruturais e culturais em nossa sociedade.
Machado afirma que, enquanto profissional da saúde mental e mãe de duas crianças, ela percebe que a pandemia agravou em muito a sobrecarga das mulheres em casa. “Como muitas famílias contém sistemas patriarcais e machistas, é muito comum que as mulheres cheguem em casa após o trabalho e ainda tenham de dar conta de todos os afazeres domésticos e da educação dos filhos”. O problema ficou ainda mais contundente quando algumas mulheres, além de possuírem tal jornada, tiveram de aderir ao sistema de trabalho remoto.
A psicóloga explica que alguns elementos da rotina ficaram preteridos em razão das políticas de precaução contra a COVID-19, afastando as pessoas de uma estrutura social que mantém as pessoas sãs e saudáveis. “A pandemia tirou muitas coisas que fazem parte do autocuidado da mulher como a saída de casa, prática de exercícios físicos e interação social, sobretudo confraternizações com amigos. Atividades que provém a manutenção da saúde mental.”
Em relação ao perfil das mulheres que costumam ser violentas com os filhos, Machado explica que são três os fatores que levam a essa agressividade: o contexto de vivência, a influência que essa mulher obteve em sua própria criação e, por último, a própria predisposição genética dela.
A psicóloga comenta que quando o sentimento da raiva é engatilhado, a pessoa tende a usá-lo para agir no automático. “Quando ela vê ela já gritou e já bateu no filho. Isso acontece quando a mulher está em uma situação de vulnerabilidade psicológica”. Machado explica que tal condição predispõe a mulher a ter sintomas de ansiedade, depressão ou outras psicopatologias.
O grau de não funcionalidade do ambiente a que a mulher está exposta depende de fatores como a possibilidade de dialogar, se ela tem uma rede de apoio para cuidar das crianças e se o marido tem consciência da importância da divisão justa de tarefas. “Ainda, infelizmente, é muito difícil de encontrar homens que tenham a consciência de que o que eles fazem não é ajuda, mas simplesmente o exercício correto da paternidade.”


Educação
A criação da mulher na infância também influencia na reprodução de padrões nocivos. A psicóloga ressalta que questões do tipo “como foram os modelos parentais que ela teve?” e “será que foram relacionamentos baseados no autoritarismo?” fazem muita diferença. “Quando uma mulher teve pais com tendências autoritárias, coercitivas, chantagistas emocionais e agressivas que usam métodos punitivos de educação, é muito provável que ela cresça, desenvolva um padrão parecido e os reproduza com os próprios filhos.”
Por fim, a predisposição genética não pode ser ignorada. “Toda essa tendência pode vir de forma hereditária e genética que predispõem a individua a essa agressividade. A esfera psiquiátrica interfere significativamente no comportamento dessas mulheres já que afeta no como manejam seus impulsos.”
Machado alerta para o fato de que, embora o debate público sobre a necessidade de busca por ajuda psicológica especializada esteja evoluindo, existem fatores que ainda o deixam longe do ideal de difusão na sociedade. Ela comenta que, com a falta de acessibilidade a tratamentos para a saúde mental, o assunto é estigmatizado “A mulher pode pensar que não precisa de ajuda por não se ver no estereótipo de louca. Muita gente ainda tem essa dificuldade em buscar auxílio profissional, ou como ocorre muitas vezes, só busca quando acaba extrapolando todos os limites.”
A psicóloga indica para tais mães e famílias a procura de especialistas em educação parental. “É preciso criar todo um movimento de não agressão que traz essa consciência maior sobre a importância de não usar práticas violentas com as crianças. Mas isso infelizmente está longe de atingir a maioria da população, está em um nível muito restrito.”
Como alternativa mais acessível, Machado indica a participação no grupo de estudos e práticas “Comunicação não-violenta”. O grupo realiza encontros quinzenais na Casa Colaborativa Casulo, na Rua Paula Xavier, Centro, nº 1352. No grupo são tratados tópicos como ciclos de violência e como controlar os instintos raivosos. O trabalho é aberto à comunidade.


Ficha Técnica
Repórter: Yuri Marcinik
Edição: Ana Paula Almeida
Publicação: Gabriel Ryden
Supervisão de Produção: Jeferson Bertolini
Supervisão de Publicação: Marcos Zibordi e Maurício Liesen

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