Avanir Martins dos Santos, 95 anos, “sentiu muito” quando a Estação Saudade foi desativada em 1989. Devido à idade, atualmente ela só sai para ir ao médico, trajeto que passa em frente da Estação. Antes da reforma do edifício, também lhe causava tristeza ver o prédio abandonado. O processo de revitalização iniciou em janeiro deste ano e a entrega das obras no principal prédio dos tempos da ferrovia está prevista para dezembro. Após a reforma, o local contará com uma sala-museu, com objetos relacionados às ferrovias obtidos por doação dos moradores da cidade. 

— Por isso é que se diz Estação Saudade - porque dá saudade. Pelo menos para mim, que já morava ali no fundo, bem onde é o coreto [construção com palco]. Subindo o barranquinho. Lá ficava o fundo da nossa casa.

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A CIDADE MALEITA

A administração dos trilhos que cortavam Ponta Grossa era responsabilidade da Rede de Viação Paraná-Santa-Catarina entre os anos de 1942 e 1975 e, depois, da Rede Ferroviária S/A – RFFSA - até 1989. Filha de ferroviário, Avanir cresceu nas casas da “Rede”. Ela conta que nasceu em uma casa dos funcionários da companhia no dia 21 de abril de 1824, em Tomazina, no Paraná.
Por volta dos quatro anos, ela se mudou para Itararé. O pai, Juvenal Martins, que nasceu em 6 de agosto de 1888, dizia que a terra “estava maleita”, comparando a terra os prejuízos de uma malária. Portanto, deveriam se mudar. Avanir mostra a carteira de trabalho do pai.
Avanir perguntou se a repórter queria ver os documentos. Respondi que sim. A senhora se levantou sem buscar o apoio do andador que usa para se deslocar às clínicas. Foi ao quarto ao lado e voltou com uma pilha de papéis amarelados. Mostrou todos eles. Pegou na mão um documento, sorriu antes de exibir a carteira de trabalho aquela que estava “virada num fiapo”:
— A única herança que tenho do meu pai é esta.
Avanir chegou em Ponta Grossa, quando terminavam do antigo Hospital 26 de Outubro, hospital feito para os ferroviários da época, na rua Joaquim Nabuco, localizado atrás do Shopping Palladium. Mas Avanir não sabe dizer com certeza os anos, não por falta de memória. Perguntei datas precisas algumas vezes e a resposta sempre era a mesma.
— Saber a gente sabe, mas não marca data. Ai a memória vai se perdendo.
Por outro lado, da infância ela lembra com precisão:
— A gente juntava aquele bando de criança e ia brincar ali no fundo na barranca da estação.

A ESTAÇÃOZINHA

A família de Avanir construiu uma escada no barranco nos fundos da casa da rua Tenente Hinon Silva - paralela à “Rua da Estação”. Ela levava à linha do trem. Avanir costumava ver a “ordem”, ou seja, a escala de serviço do pai no depósito de máquinas. Avanir chamava o espaço ao lado da Estação Paraná de “estaçãozinha”. Na época, os passageiros desciam na Estação Saudade. Os trens faziam a manobra no pátio, onde hoje fica o Complexo Ambiental. Havia sempre um maquinista escalado para fazer as manobras do trem de passageiros.

O Vagão PT

Avanir saía da sua casa, descia até a linha do trem, nos fundos da Estação Saudade e pegava carona em um vagão sem cobertura - conhecido na época por “vagão PT”. É evidente que não tem nenhuma conotação ideológica. Seria anacronismo de nossa parte.
— São aqueles vagões que só têm assoalho. Não são fechados. Só têm assoalho e rodas. Eu pegava um e ia embora. O revisor - o funcionário que prepara o vagão pra viagem, ralhava comigo - [imita uma voz grave] “Desça daí, menina! Vai cair no meio dos vagão e vai morrer.” Eu tinha medo de cair, mas eu não caía. Eu me segurava bem e ia embora lá pro depósito.
Chegando no depósito, Avanir anotava a escala de serviço do pai em um papel e levava para casa. O pai viajava dois dias e voltava. Às vezes partia para a Estação de Rio Azul (próxima a União da Vitória), às vezes saía rumo a Jaguariaíva. Quando o pai dela ia para União da Vitória, Avanir viajava dentro do bagageiro para ver os padrinhos sem precisar pagar passagem. Rindo, ela conta que viajava muito de trem usando expedientes clandestinos.

O MAQUINISTA QUE FICOU DOENTE DE TOMAR VENTO

Quando o pai viajava a trabalho, Avanir sabia quando ele voltava. Sabia só de ouvir o barulho do apito do trem. Segundo ela, era um apito diferente dos outros. Ela e os dois irmãos corriam para perto da linha. Seu Juvenal trabalhou mais de 50 anos na Rede. O irmão mais novo dela, Osmário Martins, seguiu carreira na Rede tal como o pai. Foi trabalhar muito novo na ferrovia. Também como maquinista.
Osmário ficou doente no trabalho. Foi Avanir quem recebeu a notícia. Osmário costumava sentar na janela dos vagões em vez de sentar no banco da máquina - e pelo que soube do “doutor André”, foi isso que deixou o irmão “fraco da cabeça”. Ele ficou internado dois meses.

Romance nos trilhos

A ferrovia volta às memórias inclusive para falar de romance. Mostra a imagem do falecido companheiro, Brasiliano Bueno Carneiro. É uma imagem 3 x 4, afixada na carteira de trabalho do ferroviário.
— Por isso que é bom guardar as coisas. As do meu véio estão tudo aqui. Esse homem aqui era muito bom pra mim. Uma vez o doutor André me mandou chamar. Ele queria saber porque o “Bueno” porque ele encrencava com deus e tudo mundo. Ele era muito brabo. O que ele tinha de brabo, tinha de coração bom. Tive que falar a verdade para o doutor André - “doutor André, ele é um homem muito bom”.
Hoje, Avanir se emociona pelo tempo que passou. Quando necessita de médicos, relembra as facilidades do Hospital 26 de Outubro e da Cooperativa dos Ferroviários, que ficava próximo à Estação Saudade, com lojas para os funcionários, de alfaiataria, mercado a outras mercadorias. Enquanto caminha com seu andador rumo ao médio, ela se lembra com detalhes de sua infância.

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Repórter: Jessica Allana

Supervisores: Angela Aguiar, Fernanda Cavassana e Helena Maximo

Edição: Maria Fernanda Laravia