“Meu nome é Marilys, tenho 56 anos. Sou a primeira travesti a retificar o nome social no título de eleitor em nossa cidade, Ponta Grossa, no Paraná. É lei pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que nos dá o direito de sermos chamadas pelo nome social feminino para exercer a nossa cidadania enquanto travestis, respeitando a nossa identidade de gênero, num momento importante para o nosso país, que é a eleição, elegendo nossos candidatos para presidente, governador, deputados e senadores.”
A declaração estava escrita em um papel que Marilys segurava, entre as mãos, quando foi entrevistada pela equipe de reportagem do Portal Periódico. Para ela, esse assunto é de grande importância e, por isso, a travesti teve o cuidado de “falar bonito”, como ela mesma disse quando me viu. Preferindo não usar o sobrenome, para preservar a família, Marilys orgulha-se do novo título obtido aos 56 anos. Se considerado que a expectativa de vida da população trans no Brasil gira em torno dos 35 anos, a conquista assegura não somente a possibilidade, tardia, do exercício da cidadania, mas aponta para a necessidade de políticas públicas voltadas à comunidade LGBTQ+.
A auto-identificação pelo nome social foi reconhecida pelo TSE, em março deste ano, a partir da resolução 23.562/2018. Desde então, a decisão da identificação com o nome social não cabe mais a um juiz, como acontecia anteriormente a partir de solicitação feita com a abertura de processo judicial, mas ao eleitor que passa a ter o direito de ser reconhecido como ele deseja. O nome social, além de indicado no título de eleitor, também constará no caderno de votação das seções, utilizado pelos mesários no dia da eleição.
A trajetória de Marilys até a retificação do nome, assim como na maioria dos casos da comunidade travesti e trans, foi longa. “Eu sou travesti desde os 11 anos de idade, mas me assumi faz uns 5 anos”, relata apontando as dificuldades sociais enfrentadas - como conseguir um trabalho - até ter garantida, em documentos, a identidade trans feminina.
E embora já usasse peças discretas do vestuário feminino enquanto trabalhou como motorista e no comércio, ainda com a identidade de gênero masculino, tinha medo de se assumir e enfrentar o preconceito. “Eu me vestia como masculino, mas eu não me sentia bem. Roupa debaixo eu usava feminina e a roupa de cima masculina. Eu olhava as mulheres, mas eu me sentia totalmente diferente. Eu queria ser o que uma mulher vestia”, relata enfatizando que um dos empecilhos foi enfrentar o preconceito familiar.
A retificação do nome social, no título de eleitor, aconteceu no último dia 03 de maio. Com o documento nas mãos, ela demonstra a satisfação de poder votar, pela primeira vez, como mulher trans. Sair de uma invisibilidade social se revela não somente na materialidade do documento, mas na possibilidade de ser tratada, no espaço público, no gênero feminino. “Eles me chamaram o tempo todo pelo nome social, pelo nome feminino, que é como eu gosto de ser chamada”, relata acerca do atendimento durante o processo de retificação do título no Cartório Eleitoral de Ponta Grossa.
Marilys ainda se ressente de ter passado mais de cinco décadas de vida de autoprivação do direito de assumir a identidade trans, por medo do preconceito. Apesar disso, ao longo da entrevista, parece amenizar o peso dos vários episódios de violência sofridos junto a familiares, vizinhos e até com desconhecidos. Por vezes, chega a demonstrar resignação frente à intolerância social. “Só fui ameaçada de morte duas vezes”, diz.
A fila de espera para a votação no dia 07 de outubro é aguardada com ansiedade pela travesti que acredita ser, finalmente, um momento em que não será mais submetida ao embaraço de ser tratada como um eleitor, sendo chamada por um nome masculino, enquanto se veste, e se sente, como uma mulher trans. “Para nós, é muito importante votar já retificado no título, pra não ter o constrangimento na hora da fila. Estar vestida de mulher e não ter o constrangimento na hora de chamarem. E é muito importante pra nós votarmos, pra ver se mudamos esse país.”
E a mudança não é apenas social, mas também subjetiva. Esta foi a segunda vez que entrevistei Marilys. Na primeira, a travesti se referiu a ela mesma, ao longo de quase toda a entrevista, usando o gênero masculino. Em nosso último encontro, ainda que a fala deslizasse, por vezes, para a identidade masculina, ela já se apresentou como eleitora.
Marilys é a primeira das 21 pessoas a conseguir a retificação do nome social no título de eleitor em Ponta Grossa, segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TRE)
Representatividade trans na política
Outro avanço para a comunidade LGBTQ+, nas eleições de 2018, acontece com o número de candidaturas de pessoas trans para os cargos legislativos. Segundo o site da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) foram contabilizadas 53 candidaturas, entre elas, uma para o Senado Federal, duas ao cargo de deputado distrital pelo Distrito Federal (DF), 17 candidaturas ao cargo de deputado federal e 33 candidaturas ao cargo de deputado estadual.
No Paraná, temos duas candidatas a deputada estadual: Jéssica Camargo (PT) e Gisele Schimidt (PSB). Para deputada federal, o Estado apresenta apenas uma candidata: Renata Borges (PSB).
ONG Renascer
Fundada no dia 20 de setembro de 2000, a ONG Renascer atua na garantia de direitos para a comunidade em geral através do Serviço de Convivência e de Fortalecimento de Vínculos, que atende a população em geral.
A Renascer desenvolve mais especificamente um trabalho de apoio à comunidade LGBTQ+. Com sede localizada no bairro da Nova Rússia, o grupo acolheu Marilys e a auxiliou na garantia dos próprios direitos como travesti. “Eu tenho o maior carinho pela ONG Renascer, pois eles me resgataram e me deram dignidade. Me mostraram como era o certo pra ser quem eu sou”, relata sorrindo.
O Renascer encaminhou Marilys para a retificação do nome social. “Primeiro, eu passei pela ONG, que me deu toda a orientação para retificar o nome. Então, eu segui o procedimento que eles me orientaram”, explica.
Responsável pela orientação judicial das pessoas acolhidas pela ONG, a advogada Beatriz Martins Ciriaco de Francisco ajudou no passo a passo da retificação do nome social da primeira trans de Ponta Grossa.
A menor burocracia no processo de retificação, destaca a advogada, facilitou na garantia dos direitos básicos da população LGBTQ+. “Hoje, não é mais necessária a passagem burocrática pelo judiciário. A retificação do nome social pode ser feita diretamente no cartório eleitoral”, explica.
A advogada afirma que a retificação do nome social “é importante para não haver constrangimentos na hora da fila do voto e para a pessoa trans sentir-se pertencente e respeitada no espaço público”.
A entrevista com Marilys foi realizada junto com Matheus Rolim, aluno do 2º ano. O repórter já realizou uma matéria sobre a retificação do nome social em documentos para a edição 204 do jornal Foca Livre, disponível no link: https://periodico.sites.uepg.br/index.php/foca-livre/1126-foca-livre-2