Sem regulamentação na lei, enquadramento e prisão de usuários de maconha depende da interpretação da polícia e da justiça.
O sol brilha numa bela e preguiçosa manhã de segunda-feira nos Campos Gerais. Lauro*, aos 23 anos, como de costume, aguarda no ponto de ônibus sua condução até a universidade. O relógio marca 8h20min quando um veículo se aproxima lentamente, e não é o ônibus que o levaria para a aula, mas uma viatura da Polícia Militar. Dois policiais saem do carro e o abordam violentamente. Com uma pistola em punhos e “mãos na cabeça!”, os policiais revistaram Lauro e encontraram o flagrante que justificaria uma visita à delegacia. O estudante era algemado enquanto observava o seu ônibus passar. Os colegas de Lauro, dentro do ônibus, testemunhavam a ocorrência. Ao chegar à delegacia, Lauro precisou ficar nu e realizar agachamentos em cima de um espelho enquanto a balança marcava 0,9 gramas da maconha que portava.
Após um longo processo de perguntas, explicações e humilhações, o estudante assinou o termo que o registrava como usuário de drogas e que demandaria uma audiência para penalização. Cento e vinte horas de prestação de serviço comunitário e cinco anos sem cometer nenhuma infração foi o resultado daquela manhã. Lauro ainda “escapou”, pois alguns usuários autuados em flagrante são encaminhados diretamente ao presídio, acusados de crimes como tráfico de drogas ou associação ao tráfico.
* O verdadeiro nome do jovem foi preservado.
Traficante?
Quase um terço da população carcerária paranaense está presa por tráfico de drogas. O problema é que a legislação brasileira não é específica quando se trata de definir quem é usuário e quem é traficante, como propõe o segundo parágrafo do artigo 28 da Lei 11.343/06, que diz respeito ao porte de drogas para consumo próprio: “Para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente.”
Critérios um tanto subjetivos, como alega Aknaton Toczek Souza, advogado e professor de direito penal e criminologia. Segundo ele, na prática jurídica é visível o grande número de pessoas que são processadas – e presas preventivamente – como traficantes, mesmo portando quantidades ínfimas de drogas. Além disso, no campo da segurança pública existe o hábito de identificar populações e indivíduos considerados “perigosos” à sociedade como inimigos sociais a serem exterminados. “Essa interpretação dos operadores é evidentemente marcada pelo senso comum, repleto de preconceitos e estigmas”, denuncia Souza.
De acordo com o levantamento do Instituto Sou da Paz, cerca de 67% dos presos por tráfico de maconha no Brasil foram flagrados portando menos de cem gramas da substância, sendo 14% deles com quantidade inferior a dez gramas – algo em torno de dez cigarros. Segundo o levantamento, o indivíduo que é apreendido com pouca quantidade da droga e sem antecedentes criminais é chamado de microtraficante. Os dados são surpreendentes: em cada 10 presos por tráfico, oito são microtraficantes.
Os números fomentam a velha discussão sobre a real necessidade de se prender aqueles que carregam poucas quantidades de maconha. Seria a cadeia a melhor solução? Segundo Silmara Carneiro e Silva, professora de Serviço Social e coordenadora do programa Patronato de Ponta Grossa – que visa ao atendimento de egressos do sistema penitenciário –, a resposta é não. E mais: a prisão traria graves prejuízos, tanto ao sistema carcerário como a esses indivíduos.
“Considero que as estratégias de enfrentamento ao tráfico devem sim ser repressivas. Entretanto, é necessário identificar e tratar de forma diferenciada o uso das drogas”, argumenta a professora. A prisão para os casos de dependentes químicos, ou ainda para aquele usuário que não tem envolvimento com o crime poderia gerar sérias consequências para o próprio indivíduo, defende a assistente social. Ele estaria em um ambiente que apenas acentua seus problemas pessoais e sociais, acompanhado de pessoas envolvidas em crimes graves, em cárcere e convivência integral.
Ana Maria Andrade é estudante e usuária de maconha há 10 anos. Ela consome, em média, três cigarros da substância por dia, fumando aproximadamente 20 gramas por semana. “Minha maior dificuldade em conseguir minha maconha é o envolvimento com o tráfico, o que me liga diretamente ao crime”, desabafa a estudante. Ana Maria reforça a ideia de que as punições graves ao usuários (como o cárcere privado) estão à margem do entendimento individual do policial.
Superlotação em Ponta Grossa
A Cadeia Pública Hildebrando de Souza abrigava, em março de 2016, 703 presos em um espaço com capacidade para 207. Mesmo com diversas atividades e projetos implantados no final do ano passado, como a soltura de mais de 50 presos que progrediram para a liberdade condicional, a situação da Cadeia em março de 2017 era ainda mais alarmante: são 731 detentos, quase 30 a mais do que o recorde de superlotação batido no ano passado. Desses, 137 estão presos por crime de tráfico de drogas, sendo que 81% responde por crimes relacionados ao consumo – que, pela Lei Brasileira de Drogas, não podem ser puníveis com prisão.
Segundo a Guarda Municipal de Ponta Grossa, entre janeiro e fevereiro deste ano, foram realizadas 90 abordagens a suspeitos de tráfico de drogas. A maioria dos flagrantes são feitos por câmeras espalhadas pela cidade. O que as câmeras não são capazes de identificar é se aquela pessoa é um traficante ou apenas usuário. Essa distinção também é bastante subjetiva, tanto pela polícia, como pela sociedade em geral. Das abordagens, somente 11 foram encaminhadas para a Polícia Civil por caracterizarem o crime de compra e venda ilegal de entorpecentes. Nas demais, alguns indivíduos foram levados para a assinatura do termo circunstanciado, o mesmo que Lauro assinou.
De acordo com um ex-policial militar que não quis se identificar, essa é uma maneira de “dar o exemplo”. “A ideia é punir um, e atingir a todos”, alfineta. O problema dessas punições é que, muitas vezes, o indivíduo vai para a cadeia e, mesmo estando em regime fechado, não para de fumar maconha – como muitos inclusive já postaram em redes sociais –; o que não gera, de fato, o resultado esperado pelas autoridades, e acaba por agravar a situação de superlotação dos presídios, como indica a opinião das fontes especializadas ouvidas pela reportagem.
Legalize, já!
Em Ponta Grossa, a discussão sobre a legalização da maconha ganhou voz no decorrer deste ano. Em abril, foi realizada a primeira Marcha da Maconha da cidade e do interior do estado. Dentre as pautas discutidas, estavam o uso medicinal da planta, a regulamentação e a descriminalização da droga, além da legalização para fins recreativos.
Luíse Macedo, uma das organizadoras do evento, explica que o principal objetivo da marcha é trazer o debate à população ponta-grossense. “Moramos em uma cidade relativamente grande e extremamente tradicional. Achamos que Ponta Grossa já está preparada e deve receber o debate sobre a maconha, afinal, ela já está muito presente na nossa sociedade, está apenas escondida”, defende a militante.
Quase 300 pessoas participaram do evento, segundo a organização. O debate foi recebido com certa rejeição por parte da população, como se pôde notar na divulgação do evento nas redes sociais. Por outro lado, foi compartilhado de forma positiva por sites nacionais que apoiam a legalização, como o Hempadão, o SmokeBuddies, e o Maryjuana.
Como a descriminalização afeta o sistema carcerário
A descriminalização da maconha poderia afetar positivamente o sistema carcerário brasileiro, que possui a 4ª maior população prisional do mundo, segundo dados do Ministério da Justiça. Das quase 608 mil pessoas presas, 27% está atrás das grades por conta do tráfico de drogas, e a maioria foi pega com pouca quantidade das substâncias.
Para o vereador pontagrossense Sargento Guiarone de Paula (PROS), integrante da Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Segurança, a descriminalização da maconha não é a solução para a superlotação das cadeias públicas. "Não diminuiria [o problema da superlotação], porque muitos dos usuários de maconha não ficam presos. A Lei é branda para esses casos". O vereador acredita que a legalização poderia, inclusive, agravar o problema, pois "o usuário de drogas está financiando o tráfico".
A maconha é a droga ilícita mais consumida no Brasil e no mundo, e a maior responsável pelas prisões; portanto, logicamente o número de indivíduos presos em decorrência do seu porte diminuiria com a legalização. Todavia, segundo Aknaton Toczek Souza, regulamentar civilmente o consumo da maconha não resolverá o problema das condições carcerárias porque as políticas de repressão continuariam as mesmas. “Não apenas contra as drogas, mas contra as pessoas, facilmente identificadas de forma grosseira nas estatísticas criminais”, finaliza.