Colônia Sutil sobrevive às margens da rodovia e do poder público

FOTO VANIR FERREIRA
Vanir Ferreira, moradora da comunidade quilombola Sutil. Foto: Jaqueline Andriolli


Precariedade de serviços públicos e dificuldade para certificação de terras dificultam a vida de moradores e ameaçam história de comunidade quilombola na divisa entre os municípios de Ponta Grossa e Palmeira, nos Campos Gerais (PR).

A cerca de uma hora de ônibus do terminal rodoviário de Ponta Grossa, a Comunidade Quilombola Sutil está mais próxima do que alguns bairros dentro da cidade. A única condução em direção ao local é a linha para Palmeira, ao custo de R$ 5,50. A comunidade quilombola fica na divisa dos municípios, e, num primeiro momento, parece uma grande fazenda. Mais de perto, o que a chama atenção é a falta de serviços básicos como educação, saúde e saneamento. 

“Nasci e me criei aqui” é a afirmação recorrente e uma marca de identidade de moradores do Sutil. Uma história pouco lembrada por passageiros que avistam a entrada da comunidade à beira da rodovia pela janela do ônibus – um “lugar de gente escura”, dizem alguns, sem saber que ali moram descendentes de pessoas que foram escravizadas.

O ponto de parada é em meio à rodovia Dep. João Chade (PR-151). A entrada da colônia é, literalmente, entre as árvores, seguindo a estrada de terra. Depois de bater na porta de algumas casas, sem sucesso, a equipe de reportagem percebeu o estranhamento dos moradores. “Meu marido que sabe e ele está trabalhando” foi uma frase repetida diversas vezes durante a tarde de entrevistas. As mulheres que não trabalham fora ficam encarregadas de cuidar da casa e da fazenda. A falta de horários mais flexíveis de ônibus para a cidade torna inviável a volta a tempo de receber as crianças que chegam da escola ao final do dia.
A comunidade não possui nenhuma assistência básica instalada e permanente. O posto de saúde é em um ônibus deslocado semanalmente e a escola mais próxima fica no bairro Cará-Cará. O Sutil também não tem nenhuma política pública de permanência de identidade negra quilombola. Os mais velhos, que conheciam as histórias, morreram, e alguns saíram da comunidade.
Para a pesquisadora Miriam Hartung, que estudou o Sutil em seu doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), existe um processo de invisibilidade negra no país. “Hoje em dia eu acho que a presença da população negra nos estados do Sul está mais reconhecida, no sentido de que as pessoas já não dizem mais que não existem negros no Sul do Brasil, mas [a população negra] não está reconhecida no ponto de vista dos direitos”, afirma Miriam, em entrevista via Skype. “Ainda temos embates sobre reconhecimento de terras, processos de apropriação, serem sujeitos de direitos de saúde e educação. Do ponto de vista da administração, Ponta Grossa desconhece a existência do Sutil”. Confira o panorama histórico da escravidão no Paraná feito por Miriam 

Quem é o Sutil?

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), no Artigo 2º do Decreto 4.887/2003, são considerados descendentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais com trajetória histórica que possuem alguma relação com o território em que vivem. O Sutil, que antigamente partilhava território com a comunidade quilombola Santa Cruz, é um dos 37 quilombos registrados no Estado do Paraná. Suas terras foram doadas por fazendeiros alemães, partilhadas entre os descendentes de quilombolas, que se tornaram donos do território em 1854, quando Maria Clara do Nascimento, fazendeira e dona da propriedade, faleceu e deixou metade das terras como herança para os ex-escravos.
As terras foram povoadas pelos quilombolas e seus descendentes, porém, com o passar do tempo, o ambiente tornou-se cada vez mais uma mistura de raças. Lauro Roube, neto de avô quilombola e avó inglesa, nasceu e cresceu no Sutil, e conta que o pai, que era branco, era respeitado na colônia pois era professor. “Antigamente nenhum branco casava com as pessoas daqui, os moradores faziam essa diferença. Se viesse uma pessoa branca aqui na região eles não deixavam entrar, o pessoal se reunia e tirava as pessoas, branco aqui não se criava”, relembra.

FOTO LAURO ROUBE
Lauro Roube morador da comunidade quilombo Sutil. Foto: Ellen Almeida 

De acordo com o último levantamento, feito em 2010, 144 pessoas moram no Sutil. Após as mortes dos habitantes mais antigos – que carregavam na memória as histórias inexistentes em qualquer outro tipo de arquivo – a comunidade convive com a gradativa perda de identidade. Os filhos e netos de quilombolas formaram novas famílias, trouxeram novos membros ou deixaram as terras de seus descendentes e foram para as cidades próximas. Apesar da distância entre a colônia e a cidade, muitos moradores que uma vez saíram de lá acabam voltando para suas terras, como Selma de Jesus Gonçalves. “Quando casei, fui embora e fiquei dez anos fora. Mas como nós somos quilombolas, somos donos dessas terras. Voltamos com a ideia de morar no que é nosso, o salário não é muito, mas eu estou no que é meu. Não vale a pena ficar fora do lugar que é nosso, até pela minha filha; quero levá-la ao lugar que é dela”, explica. 

Abaixo é possível conferir o mapa do território atual da Colônia Sutil. A ilustração é uma reprodução feita pela equipe do Periódico que esteve no local no dia 30 de junho de 2017. No Brasil existem iniciativas que tentam mapear e colocar locais históricos na plataforma Google Maps, entretanto, a comunidade Sutil ainda não está registrada no mapa.

MAPA DA COLÔNIA SUTIL

Ilustração produzida pela equipe
 

Conforto de longe
A comunidade possui dois meios de transporte coletivo, um ônibus destinado para as crianças que estudam fora - principalmente no bairro Cará-Cará, o mais próximo da colônia - e outro que faz o trajeto Ponta Grossa-Palmeira. “Nossas principais dificuldades aqui são a falta de postinhos de saúde para atendimento da comunidade e escolas. O transporte escolar demora muito para levar e trazer todas as crianças”, relata a moradora Cleusa Freitas. O ônibus escolar passa por todas as fazendas da região, o que ocasiona a demora. “Minha neta estuda no Cará-Cará em tempo integral, ela sai às 6h da manhã e volta às 19h, duas horas depois do término da aula”, completa Freitas.
Até o final da década de 1980 o Sutil contava com uma escola, primeiramente construída dentro do território e, em seguida, transferida para a rodovia. Os moradores contam que o fechamento da escola se deve aos constantes roubos de merendas, materiais escolares e invasões. Além disso, a distância da cidade e os horários de ônibus dificultavam contratação de professores.
Cleusa Freitas mora na comunidade há 30 anos, é casada com neto de quilombola e mudou-se após o casamento. Ao explicar sobre o atendimento de saúde na comunidade, afirma ser complicado pela precariedade dos serviços ofertados pelo Poder Público. “Um ônibus vem às quartas-feiras, encosta ao lado do barracão comunitário, atende 12 pessoas pela manhã e vai embora, o médico não passa desse número. Eles passam encaminhamento e às vezes medicamentos, quando tem. Eles também não atendem crianças. Quando precisa dar vacina, temos que nos deslocar até o Guaragi (distrito de Ponta Grossa que fica aproximadamente a 30 km de distância da comunidade), já que no postinho do Cará-Cará não atendem moradores de fora do bairro, e nas UPAs também não. Em casos de emergência mandam a gente ir para o Pronto Socorro, no centro de Ponta Grossa”, completa.
Fora a baixa frequência da Unidade Móvel que atende o Sutil apenas uma vez por semana, os moradores relatam que na última quarta-feira do mês, por conta de um curso, o clínico geral não trabalha na colônia nem é substituído por outro médico. Em casos de urgência, os moradores precisam percorrer aproximadamente 27 quilômetros, que é a distância entre a entrada da Colônia Sutil e o Pronto Socorro no centro da cidade.
Segundo a Prefeitura de Ponta Grossa, a Unidade Móvel é um projeto da Gerência de Proteção Social Básica (GPSB), e tem o objetivo de levar os serviços aos usuários da Política de Assistência Social que vivem em locais de difícil acesso, distantes de unidades físicas dos CRAS. A população quilombola é atendida por uma Equipe de Saúde da Família (ESF) volante referente à Unidade Básica de Saúde (UBS) do Guaragi. Cada comunidade é atendida apenas uma vez por semana, devido à distância e à dificuldade de acesso. A Prefeitura afirma que a quantidade de pessoas atendidas na comunidade quilombola não comporta uma segunda equipe, pois as duas unidades que atuam na região atendem 350 pessoas. E a UBS do Guaragi atende 2500 usuários, já somando os quilombolas.
A água na comunidade é distribuída através de um poço artesiano construído pelos moradores em parceria com a Prefeitura de Ponta Grossa. O poço foi feito nas terras da moradora Vanir Ferreira, também descendente de quilombola. “O poço foi construído com contribuição da comunidade, um pouco da prefeitura e de um pessoal de Curitiba. Sempre que estraga a bomba é o pessoal de Curitiba que vem arrumar. Daqui, a bomba toca a água lá na caixa grande, lá em cima, e depois distribui para as casas. Na época, eles pediram autorização para construir, analisaram o lençol d'água e pediram licença para fazer o poço e eu deixei, porque é para o bem da comunidade”, afirma Vanir.

 


Antes da máquina de lavar, Vanir e as outras mulheres do Sutil desciam até as pedras do rio que passa pela colônia e lavavam as roupas da família. “Hoje tudo se tornou mais fácil, mais moderno”, brinca.

Terra de pai para filho não dá garantia a ninguém!
Desde o surgimento dos quilombos, as terras eram de quem morava no local. Como a maior parte das pessoas que residiam ali estavam ligados por laços familiares, não havia a preocupação com documentos para comprovar quem eram os donos. Com o desenvolvimento das cidades, muitas famílias acabaram saindo do território e indo para as cidades, perdendo, dessa forma, as terras, as garantias e as tradições.


Maria Aparecida mora ao lado do barracão onde armazenam a colheita de soja, que pertence aos empresários Pedro e Bruno Gorte. Ela conta dos plantios feitos pelos quilombolas no passado. Hoje, apenas algumas famílias possuem animais, pequenas hortas e plantações em seus terrenos, a maior plantação não pertence aos moradores do Sutil.

FOTO MARIA APARECIDA
Maria Aparecida e seu vizinho Davison compartilham algumas tardes na comunidade. Foto: Ellen Almeida 

Atualmente, na comunidade do Sutil, existem plantações de soja e até mesmo um galpão para armazenamento, que tem a certificação de agricultores. A mesma terra remanescente do abandono dos antigos donos, descendentes de escravos. Para a correta regulamentação das terras, as comunidades quilombolas devem passar por um longo processo no Governo Federal, em que membros da associação de moradores devem demonstrar interesse na certificação. O certificado do Sutil foi emitido em 2005 e desde então a comunidade é reconhecida oficialmente como remanescente da cultura dos quilombos.
Entretanto, o processo de regularização da autenticidade das terras é um pouco mais complexo, na medida em que muitos dos quilombos não conseguem concluí-lo, seja pela burocracia ou pela demora no trâmite do processo. Esta etapa é realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/MDA) e consiste em diversas visitas ao local, administradas por antropólogos que buscam dados sobre o território, história e sobre os próprios moradores. Depois da visita, são emitidas notificações que aprovam ou não a identificação dos terrenos. Após este passo, é publicada, pelo presidente do Incra, a resolução que reconhece os limites do território quilombola no Diário Oficial da União e dos estados.
As últimas etapas são a desapropriação dos imóveis particulares (se houver, a partir da avaliação pelo preço de mercado) e a titulação, que é colocada em nome coletivo da associação de moradores. Após a certificação, fica proibida a venda ou penhora da região. A situação em que o Sutil se encontra é na abertura do processo, que aconteceu em 2009. Sete anos se passaram desde então e nenhum dos passos seguintes foi completado. A comunidade não possui associação de moradores.
Do mesmo jeito se encontram outras 37 comunidades no Estado do Paraná. Esta é uma realidade que está imposta no país, como afirma o diretor do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA), Humberto Santos, que conversou com a equipe de reportagem por telefone. “Existem cerca de 5 mil comunidades quilombolas apontadas para a certificação e demarcação de terras, mas só tem por volta de 200 com o processo completo. O problema é a burocracia do sistema, apenas 200 das milhares de comunidades foram regularizadas nos último 15 ou 20 anos”.

FOTO BARRACO FAMLIA GORTE
Barracão para armazenamento da colheita ao lado da casa de Maria Aparecida. Foto: Ellen Almeida 

Despedida no escuro
A tarde de entrevistas terminou por volta das 17 horas. Enquanto conversávamos com nossos entrevistados durante o dia, sempre nos questionavam qual forma de transporte nos levou até lá. Os moradores estranharam quando descobriram que chegamos e voltaríamos para Ponta Grossa de ônibus. Fomos indicadas a não tomar o último ônibus, que só passaria na rodovia por volta das 20h, já que não existe qualquer tipo de iluminação nas proximidades. Conforme o sol se punha, o medo do breu se aproximava. As únicas luzes que nos fizeram companhia na volta do nosso dia na Colônia Sutil eram as lanternas dos carros e caminhões que passavam buzinando, e a luz distante do estábulo do outro lado da rodovia. Pegamos o ônibus que encostou no asfalto da rodovia às 18h30 e voltamos para o centro de Ponta Grossa. 

Foto: Ellen Almeida