Em Ponta Grossa, a falta de planejamento para contratação de substitutos reflete no caos no atendimento em hospitais e prontos atendimentos
Sandra Mare dos Santos foi diagnosticada com câncer de pulmão e garganta por um dos médicos cubanos que saíram de Ponta Grossa no dia 21 de novembro. Moradora do bairro Colônia Dona Luzia, ela teria que pegar ônibus ou andar por quase uma hora para chegar ao Centro de Atenção à Saúde (CAS) Central, caso não conseguisse se consultar uma das Unidades Básicas de Saúde localizadas próximo a sua casa.
Com a saída dos médicos, as consultas, na Unidade frequentada por Sandra, que aconteciam diariamente passaram a atrasar e a acontecer apenas em três dias por semana. O tratamento de um paciente com câncer, dependendo do tipo da enfermidade, custa ao Estado um valor que pode ultrapassar R$ 70 mil se for diagnosticado em estágios mais avançados.
Os dados foram divulgados no artigo “Quanto custa tratar um paciente com câncer no SUS”, de Tiago Cepas Lobo, publicado em 2016, pelo Observatório do Oncologia. O tratamento particular do câncer é caro e inacessível para a paciente.
A situação de Sandra é mesma de cerca de 75% da população paranaense que não possui plano de saúde, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Casos como esse mostram a importância do sistema público de saúde, como o Sistema Único de Saúde (SUS) em um país com desigualdades como o Brasil.
A saída dos médicos cubanos, que representavam cerca de 75% dos médicos da atenção básica ponta-grossense, demonstra a afobação e a irresponsabilidade por parte do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). O presidente, que assume em 2019, também defendeu, em seu plano de governo, que o Sistema Único de Saúde (SUS) não precisa de mais recursos.
Após o Governo Cubano encerrar a participação no Programa Mais Médicos (PMM) do Governo Federal, a gestão municipal de Ponta Grossa se colocou em alerta.
Em números, 56 profissionais que atendiam em postos de saúde nos bairros do município, em atividades de atenção primária, deixam os cargos. Estas compreendem ações básicas desenvolvidas na saúde pública, como vacinação, realização de exames, medicina familiar, acompanhamento de gestantes, auxílio na prevenção de doenças e a divulgação de informações referentes à área da saúde.
Ponta Grossa se tornou dependente do PMM pelo déficit que tinha de profissionais para atuar em questões de saúde básica, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde. Há cinco anos, apenas 37% das Unidades Básicas de Saúde estavam contempladas com serviço médico, além de que muitas delas necessitavam ser reformadas.
Segundo o Ministério da Saúde de Cuba, o país decidiu deixar o programa depois de Jair Bolsonaro, após eleito, reafirmar modificações no termo de¨contribuição entre os governos, o que já estava proposto em seu plano de governo.
Em alguns dos pronunciamentos realizados durante a campanha, Jair Bolsonaro chegou a fazer uma ameaça contra o médicos de Cuba: “vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil". A proposta de aplicar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira (Revalida) estava presente no plano de governo do candidato do PSL.
Após o anúncio de Cuba, Bolsonaro declarou que o país não aceitou os novos critérios estabelecidos por ele para a participação no programa. Contudo, no dia 26 de novembro, a diretora de Comunicação do Ministério de Relações Exteriores de Cuba, Yaira Jiménez Roig, afirmou, em uma transmissão ao vivo no YouTube, que o país não foi procurado pela equipe de transição do novo governo brasileiro.
“Asseguro que nenhum membro da equipe de transição informou ao Ministério de Saúde Pública de Cuba o interesse de ter uma troca de ideias sobre o termo de cooperação vigente, o que indica que o propósito do presidente eleito não é de manter o programa, mas de eliminá-lo”, anunciou a diretora.
HISTÓRICO DO MAIS MÉDICOS
Em 2013, assim que o Programa foi criado pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), Ponta Grossa passou a receber os cubanos. Em 2014, foi sancionada a Lei n° 11.723, que concedia o auxílio de moradia, alimentação e transporte aos médicos estrangeiros.
O contrato com os médicos cubanos, publicado no portal (http://maismedicos.gov.br), previa a finalização dos serviços dos médicos no prazo de três anos.
Podem se candidatar às vagas médicos brasileiros formados no Brasil, que têm preferência para assumir os cargos, médicos brasileiros formados no exterior com revalidação de diploma (Revalida) e médicos intercambistas, que devem ter habilitação para o exercício da medicina e conhecer a língua portuguesa.
A média nacional de distribuição de médicos pela Organização Mundial da Saúde é a proporção de 1,8 médicos para cada mil habitantes. Nos países vizinhos, como Argentina e Uruguai, esse número quase dobra, com 3,2 e 3,7, respectivamente. Em 2011, dois anos antes do projeto ser implantado, 22 estados estavam abaixo da determinação, segundo o Sistema de Indicadores de Percepção Social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Sips/Ipea).
Os únicos acima da média eram os do Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais), do Mato Grosso do Sul, do Rio Grande do Sul e do Distrito Federal. Nesse levantamento, o Paraná se encontrava na décima posição, com 1,17 médicos para mil habitantes.
Entretanto, devido à forte demanda do setor básico de saúde e a falta de médicos para atender essa demanda, o PMM se estendeu por mais dois anos. Ainda em 2013, paralelamente, foi feito um concurso municipal para médicos, em que apenas 11 candidatos foram aprovados e poucos assumiram os postos.
Unidade de saúde em Ponta Grossa, no bairro Órfãs. | Foto: William Clarindo
O PROGRAMA MAIS MÉDICOS
O PMM, criado pela Medida Provisória nº 621, é composto por uma série de atribuições. Entre elas, estão suprir a inexistência ou o baixo número de atendimentos em saúde básica; combater problemas específicos que afetem a saúde pública de determinadas áreas e a formação e capacitação de novos profissionais.
No caso de Ponta Grossa, o Programa teve como função prestar atendimento médico em áreas e em unidades onde serviços de saúde básica sequer eram prestados.
Jefferson Leandro Palhão é integrante do Conselho Municipal de Saúde e morador do bairro Jardim Paraíso. Segundo ele, os mais de 10 mil moradores do bairro podem ficar sem atendimento, visto que os médicos que trabalhavam na Unidade de Saúde Básica Cleon Francisco de Macedo eram todos cubanos.
Para a secretária municipal de Saúde, Angela Conceição Oliveira, o município será impactado. “Com a falta de médicos no quadro, haverá uma rotatividade nas unidades básicas entre os médicos do município que estão registrados pela Secretaria”, explica. Com isso, os pacientes desses postos não contarão com médicos diariamente, como afirma Angela.
Segundo Oliveira, no último concurso público realizado pela prefeitura, em 2018, houve a inscrição de apenas 37 médicos. Desse total, 26 estão capacitados para trabalhar na rede pública, vinculados ao PMM.
Todas as 56 vagas, deixadas em aberto com a saída dos médicos cubanos, estão sendo preenchidas, provisoriamente, com a ajuda desse concurso. A gestão municipal não aplicou nenhuma preparação e logo colocou os profissionais para trabalhar. Os aprovados têm até dia 14 de dezembro para se apresentarem no local de trabalho.
De acordo com Jeferson Palhão, uma das reivindicações apresentadas ao Governo Municipal pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS), enquanto os cubanos ainda estavam trabalhando na cidade, era formular uma estratégia de contratação de outros profissionais para evitar a falta de médicos.
“Foi um erro não fazer reposição. Era um programa de saúde do Governo Federal. Todo programa tem um começo e fim, não dá pra prever quando acaba”, critica o conselheiro Jefferson Leandro Palhão. “Acredito ter sido um descuido sem tamanho do Governo Municipal”, enfatiza.
VISÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
A conselheira nacional de Saúde, Heliana Hemetério, defende que “o SUS é o maior e melhor sistema de saúde do mundo e tem como base a equidade, a universalidade e a integralidade”. Porém, “se o SUS não funciona é porque existe um projeto político de capital ligado à saúde privada que não quer e não deseja que o SUS funcione”, afirma Hemetério. A defesa do sistema público de saúde brasileiro esteve muito presente em discussões sobre a reforma do Plano Nacional de Atenção Básica, em 2017.
Na perspectiva das políticas públicas, Jefferson, que há mais de 10 anos atua como conselheiro de saúde, relata ter participado, no dia 29 de novembro, de uma pré-conferência. O evento, promovido pelo Conselho Municipal de Saúde de Ponta Grossa, encaminhou discussões que antecedem a 11ª Conferência de Saúde na cidade, que acontece nos dias 7 e 8 de dezembro. Esta conferência faz parte de um processo do município de definir, em conjunto com a comunidade, as próximas diretrizes para o Plano Municipal de Saúde.
Entre os tópicos levantados nesse debate que serão levados para a Conferência Municipal, está a questão dos médicos cubanos. No entanto, nesta pré-conferência, os conselheiros não se aprofundaram no tema pela questão de funcionamento da reunião, que era para decidir delegados que irão participar de uma conferência de âmbito regional.
O município de Ponta Grossa é a cidade brasileira que recebeu mais médicos cubanos. Com a retirada desses profissionais das unidades básicas, a demanda pelo atendimento a pessoas que necessitam de cuidados não emergenciais cresce em outros locais, como explica Jeferson.
“Quando a população começar a procurar atendimentos particulares e, isso vai acontecer muito rápido, o custo para o serviço básico particular vai aumentar devido à demanda. O Governo Federal precisa resolver o quanto antes estas contratações de médicos”, alerta.
O conselheiro ainda ressalta: “Quando não tem médico na unidade de saúde, as pessoas tendem a migrar para o atendimento de outras unidades, que já eram sobrecarregadas, ou para o pronto socorro e Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que não são serviços feitos para atender demandas que chegam no postinho de saúde”.
O Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) foi indagado pela equipe de reportagem do Portal Periódico sobre a posição do órgão diante do Programa Mais Médicos. Em conjunto com o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho acreditam que o programa foi criado por motivos políticos e financeiros. “Sobretudo pelo fato de que, em cinco anos, não foram implementados os ajustes para que o Programa deixasse de ser um paliativo para atender as necessidades reais da população”, avalia.