Mesmo proibido por lei, salvo em casos de estupro e risco de vida à mulher, o aborto é praticado no Brasil clandestinamente. O método mais utilizado pelas mulheres é por ingestão de medicamento, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada em 2016. O remédio mais comercializado em território brasileiro para esse fim é o Cytotec, que utiliza o princípio ativo Misoprostol. Mesmo sendo proibido legalmente no Brasil desde 2005, ele é facilmente encontrado para compra na internet.
Os sites são de fácil acesso e a venda é feita por meio de redes sociais. A reportagem entrou em contato com três sites que realizam a venda do medicamento abortivo, simulando uma compra. Ambos exigem pagamento à vista por transferência bancária ou boleto e os preços vão de R$100,00 a R$150,00 por comprimido. As doses indicadas pelos vendedores variam entre quatro e dez unidades de Cytotec, dependendo do progresso da gestação. Junto com o medicamento, os vendedores afirmam enviar instruções de como utilizá-lo.
A advogada Meryellen Teleginski explica que “o Cytotec é uma medicação que não pode ser vendida em farmácias aqui no território brasileiro, e nem por pessoas físicas. A única forma de utilizar o Cytotec é em hospitais”. Nos hospitais, o remédio é utilizado em casos onde há necessidade de indução do parto, pois o medicamento causa contrações uterinas, como explica o farmacêutico Lucas Eduardo Brojan. “O medicamento não é abortivo, ele induz ao parto. O que acontece é que quando se induz ao parto antes da hora, ele acaba sendo abortivo”.
No Brasil, ele é legalmente utilizado nos dois casos onde o aborto é legalizado: em ocorrência de feto anencefálico e em casos de estupro. “O Misoprostol é uma substância que não é um medicamento com potenciais riscos adversos e sua administração intravaginal é mais segura, além de que o manuseio é realizado em um ambiente hospitalar”, esclarece Brojan. O farmacêutico alerta sobre o risco da utilização de um medicamento sem origem garantida, no caso das vendas clandestinas, onde não se sabe se há controle de qualidade durante a produção ou se apresenta a mesma quantidade que afirma no rótulo, entre outros fatores.
Das mulheres entrevistadas pela PNA de 2016, 48% precisou ser internada para terminar o aborto. Em Ponta Grossa, foram realizados 836 procedimentos de curetagem pós abortamento/puerperal nos anos de 2017 e 2018, de acordo com o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH SUS), por meio da Secretaria de Saúde do Paraná. No entanto, de acordo com dados da assessoria de imprensa da Prefeitura de Ponta Grossa, há registro de apenas um aborto legal realizado no município entre 2013 e 2018.
A curetagem deve ser realizada em casos de aborto espontâneo onde há sangramento intenso e/ou quando não há saída completa do feto. Um dos vendedores do medicamento quando questionado sobre o procedimento de curetagem, indica que a mulher realize o procedimento quando o processo de aborto for incompleto, já que pode trazer complicações. “A administração oral do medicamento pode levar a certas complicações e causar hemorragia. Todo procedimento que vai levar a um aborto é comum sangrar. O problema é que como esse procedimento não é feito em um ambiente propício, pode favorecer a mulher ter uma hemorragia e não ter o cuidado de uma equipe médica”, destaca Brojan.
O ato de abortar nunca vem sozinho: a ausência de conhecimento dos métodos anticonceptivos e os traumas emocionais
A PNA mostra que uma a cada cinco mulheres, aos 40 anos, já realizou o aborto ao menos uma vez na vida. Os resultados da Pesquisa indicam que o aborto é um ato persistente na sociedade brasileira praticado por mulheres independente de classe social, raça, nível educacional e religião.
A professora de Serviço Social da UEPG Rosilea Werner reforça a importância da mulher que realizou o aborto em casa ou em uma clínica clandestina procurar o Sistema Único de Saúde (SUS) ou o Pronto Socorro. “Quando elas fazem isso, precisam ir direto para o SUS. Independente da onde ela fez [o aborto], em clínica privada ou usou medicamento em casa, ao terminar de fazer o procedimento vá para o hospital imediatamente. Às vezes as mulheres esperam e chegam inconscientes no hospital”, explica.
Werner coordena um grupo de pesquisa na UEPG sobre saúde reprodutiva. Ela entende que a raiz do problema está na falta de entendimento sobre os métodos contraceptivos. “Temos que tirar um pouco dessa culpa colocada nas mulheres. Muitas das vezes, quando elas fazem o aborto, dizem que estavam tomando o anticoncepcional e engravidaram, mas nenhum método anticoncepcional é 100% seguro”, reitera. “Poucas mulheres sabem todos os efeitos que é de não tomar religiosamente o medicamento e a dificuldade de aceitação da camisinha masculina pelos homens”, completa, reforçando que a educação sexual tem um papel importante na redução da incidência do aborto no Brasil.
Confira a fala da professora:
Para a psicóloga Camila da Silva Eidam, atualmente a mulher ainda é cobrada por seu papel reprodutor. “A mulher é vista como aquela que precisa desejar a maternidade. Mesmo mudando muito os modos culturais, ainda se cria essa imagem relacionada à maternidade e à mulher”, opina. Ela analisa a culpabilidade sobre a mulher que realiza o aborto como resultado da imagem criada socialmente dos papéis desempenhados entre homens e mulheres. “Tem muitas crianças que simbolicamente são abortadas pelos pais, crianças que não têm registro paterno, mas a culpa ainda recai sobre a figura da mulher”, acrescenta Eidam. E explica que esse processo pode trazer danos psicológicos graves que necessitam de atenção.
A assistente social Helena Guimarães, que também participa do grupo de pesquisa, confirma a necessidade de um atendimento de qualidade à mulher que passou por um processo de aborto. “Um bom atendimento é não colocar a mulher em situação de humilhação e tratá-la de maneira humanizada”. Werner completa que uma abordagem adequada desse problema deveria oferecer inclusive “outros tipos de acompanhamento, como terapêutico e social, porque essa pessoa passou por uma situação de aborto, ela também está com um sofrimento emocional”.
Segundo Eidam, nos países onde o aborto é permitido há um acompanhamento psicológico durante todo o processo. “Nesses países, a mulher tem um suporte psicológico antes mesmo dela fazer o aborto e o que acontece é que algumas vezes ela acaba até desistindo de abortar”, explica. No Brasil, de acordo com a psicóloga, há a previsão de um acompanhamento através da saúde pública nos casos de aborto legal quando é constatada a necessidade. Apesar disso, Guimarẽs afirma não poder confirmar se esse tipo de apoio realmente é oferecido. “Segundo algumas mulheres do grupo de pesquisa, nenhuma delas teve esse acompanhamento”, expõe.
Proposta de emenda à Constituição, a PEC da Vida, prevê proibição do aborto em todos os casos
De autoria do ex-senador evangélico Magno Malta, a PEC 29/2015 (conhecida informalmente como PEC da Vida) foi desarquivada em fevereiro deste ano pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE). Atualmente o projeto está em tramitação no Senado. Se aprovado, o Brasil se igualaria a países como Suriname, Angola, Filipinas, Haiti, entre outros onde o aborto é totalmente proibido.
Ainda, há uma proposta de ajuda financeira para que as mulheres que foram estupradas não abortarem por falta de condições econômicas. A proposição é de autoria do ex-deputado federal Luiz Bassuma. Teleginski acredita que a restrição do aborto em casos de estupro não deve acontecer. E entende que nenhuma ajuda financeira legitima essa ação, “porque não é isso que está sendo levado em conta, mas sim aspectos emocionais e psicológicos daquela mulher que sofreu esse trauma terrível.” Ela explica que “é uma escolha unicamente da mulher. Eu acredito que o Governo nesse caso não teria legitimidade, por uma questão moral mesmo, de impor isso”.
Mesmo com uma lei mais rigorosa, nada garante que mais mulheres procurem métodos clandestinos para realizar o aborto. “Porque uma mulher que não quer ter um filho, não vai se obrigar a ter esse filho, ela vai procurar um meio alternativo para solucionar a situação”, comenta a advogada. Ela analisa que o poder econômico também é determinante nesses casos, pois entende que “uma mulher com mais dinheiro consegue se dirigir até uma clínica clandestina, ser atendida por um médico, realizar o procedimento e fazer a curetagem”. Teleginski fala dos riscos à vida da mulher que não possui condições financeiras para realizar esse tipo de procedimento adequadamente e procura por métodos alternativos para realizar o aborto. “Tem mulheres que fazem [o aborto] com agulha de tricô ou que ministram mal o medicamento e acabam tendo sequelas terríveis ou até mesmo perdendo a sua vida”, completa.
Ficha técnica:
Reportagem: Arieta de Almeida e Hellen Scheidt
Foto: Foto enviada pelo vendedor entrevistado pela equipe de reportaagem do Portal Periódico
Vídeo: Arieta de Almeida
Edição: Cícero Goytacaz
Supervisão: Professoras Angela Aguiar, Fernanda Cavassana e Helena Maximo