Trabalhadores da linha de frente contra a Covid-19 estão mais suscetíveis aos transtornos mentais relacionados ao trabalho
Conforme pesquisa realizada, em 2021, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 95% dos trabalhadores da saúde reconhecem alterações significativas tanto na profissão quanto na vida pessoal causadas pela Covid-19. Dados do estudo, também apontam que 50% desses profissionais identificam cargas de trabalho excessivas atribuídas durante a pandemia, com jornadas superiores a 40 horas semanais.
O clínico geral e nefrologista, Leandro Cancelli, reconhece essa realidade e conta que o aumento no volume de trabalho está entre as principais diferenças da rotina de trabalho anterior e pós-pandemia. “Em todas as frentes que eu atuo o volume de pacientes atendidos é absurdamente maior, a rotina de trabalho torna-se mais desgastante tanto no volume de demandas quanto no desfecho, porque muitos pacientes vão a óbito”, conta.
A técnica de enfermagem, Geliane Thaise Kintopp, expõe que, além do aumento nas demandas de trabalho, a preparação para exercer as atividades e cuidados sanitários correspondem às principais mudanças. “Antes havia menos itens de proteção e os funcionários da UTI tinham livre acesso ao hospital, agora para evitar a transmissão do vírus, só podem circular dentro da própria UTI, com os devidos paramentos”, diz.
Kintopp indica que a área da enfermagem, por conta do contexto pandêmico, passa uma sobrecarga de trabalho difícil de remediar. “Faltam funcionários, alguns estão afastados por Covid-19 e outros abandonaram a função justamente pela sobrecarga no serviço, o número de pacientes com intubação aumenta e demanda um esforço grande. São muitas drogas e sedações, isso gera um cansaço físico e mental”, narra.
Sobre o principal fator extenuante no trabalho, Cancelli situa o desfecho negativo do tratamento de pacientes infectados por Covid-19. “O maior agente de estresse está vinculado a quantidade de pacientes com um desenvolvimento ruim, muitos evoluem mal, apresentam quadros graves e morrem devido a doença”, afirma. A dificuldade de prestar atendimento a todos os pacientes também representa uma questão a ser levada em conta.
Estresse é um dos problemas da categoria
Diante do excesso de exigências no ambiente de trabalho, o estresse passa a acompanhar a rotina laboral. “Na enfermagem, seja UTI ou ala clínica, os médicos passam e mandam escolher ou simplesmente dizem ‘Esse paciente vai ficar e aquele vai’, nós precisamos acatar, obedecer a ordem porque o profissional que coordena disse, mas o pensamento acelera, o emocional fica abalado, é difícil”, fala Kintopp.
Sobre o impacto emocional provocado pelo contato direto com pacientes infectados por Covid-19, Cancelli conta que “trabalhar no internamento de filhos, mães e pais está entre as situações que mais afetam”. O médico afirma que “consegue lidar com as pressões do trabalho, mas não é inerte, sobretudo, ao conversar com familiares de pacientes” inseridos nessas circunstâncias.
Acerca disso, Kintopp destaca que “está ali para salvar vidas”, portanto trabalhar com pacientes que não reagem aos tratamentos disponíveis traz os maiores efeitos emocionais. Conforme a técnica de enfermagem, “o coração aperta ao encontrar a família da vítima no corredor do hospital, aos gritos e prantos”. Assim, saber “que o possível foi feito, mas o paciente não resistiu deixa o psicológico abalado”.
Além disso, dados do estudo realizado pela Fiocruz evidenciam que 15,8% dos trabalhadores da saúde desenvolveram perturbações do sono, 13,6% apresentam oscilações de humor frequentes, 11,7% exibem incapacidade de relaxar devido ao estresse, 9,2% relatam dificuldades de concentração ou pensamento lento, 9,1% expressam perda de satisfação na carreira ou vida e 8,3% apresentam mudanças na alimentação.
Devido à sobrecarga e pressão no ambiente de trabalho, os profissionais da linha de frente contra a Covid-19 observam impactos psicológicos e comportamentais que remetem a essa realidade. “Eu vejo colegas estressados e desgastados por falta de descanso, não têm finais de semana ou feriados, alguns estão responsáveis por até 30 pacientes, precisam passar a madrugada no trabalho para checar exames e atender o público”, relata Cancelli.
Problemas do próprio sistema de saúde também trazem impactos aos trabalhadores da área. “Não encontrar a medicação específica que o paciente precisa é frustrante para o profissional, isso acontece muito nos hospitais, por falta de determinada sedação usa-se outra, quando isso ocorre precisa diluir o produto várias vezes, isso torna o trabalho mais cansativo”, narra Kintopp.
A alta na taxa de ocupação dos leitos de UTIs e enfermarias representa uma questão problemática. Segundo o médico, “há um esforço para criar novas vagas, no entanto a abertura de novos leitos implica também a necessidade de mais profissionais”. Dessa maneira, “as equipes sabem o que deve ser feito, mas por falta de equipamentos, insumos e funcionários não conseguem fazer”, conta Cancelli.
Lutos mal resolvidos são fatores comuns para o desenvolvimento de transtornos mentais Sobre isso, Cancelli conta como os profissionais de linha de frente contra a Covid-19 lidam com a morte. “Quem trabalha com pacientes graves já está habituado a trabalhar essa questão mentalmente no trabalho para não levar problemas para casa, mas nunca é absoluto, perdi colegas médicos, fico assustado e sensibilizado”, destaca.
Questões relacionadas ao medo generalizado de contrair o vírus no ambiente de trabalho também fazem parte do cotidiano desses profissionais. “Quando nos paramentamos para atender pacientes infectados por Covid-19, temos o maior cuidado, não só pelo receio da própria contaminação, mas também por medo de levar o vírus para os filhos e esposa quando deixamos o hospital”, afirma Cancelli.
Ainda conforme pesquisa realizada pela Fiocruz, 43,2% dos profissionais de saúde relatam sentimentos de desproteção no trabalho de enfrentamento a Covid-19. Dentre esse total, 23% apontam como principal razão a falta, escassez ou inadequação do uso de EPIs. Sobre isso, 64% relataram a necessidade de improvisar equipamentos para exercer as atividades de trabalho.
De acordo com Ministério da Saúde, desde o início da pandemia, estão notificados 64.689 casos confirmados de Covid-19 em profissionais da saúde. Dentre esse conjunto, técnicos/auxiliares de enfermagem correspondem a maior parcela de infectados, com 19.067 registros. Na sequência, encontram-se enfermeiros, médicos, farmacêuticos e agentes comunitários de saúde com, nessa ordem, 10.935, 7.193, 3.420 e 3.272 registros.
Kintopp expõe o impacto psicológico pela morte de colegas de trabalho e relata algumas situações que presenciou. “No final do ano passado, duas colegas e eu contraímos Covid-19, mas infelizmente uma delas precisou ser entubada e faleceu, ela era uma pessoa ativa, deixou um menininho e esposo, é uma realidade que mexe com toda a equipe do hospital”, ressalta.
A enfermeira conta que acompanhar a intubação tanto de pacientes quanto de colegas de profissão traz um peso emocional muito grande. “Agora, presenciamos a luta de um colega do SAMU, internado por conta do vírus, ele é uma pessoa muito querida e humilde, o momento é triste, a gente sabe que depois que o paciente passa pela intubação, é só por um milagre de Deus, a gente chora muito”, relata.
Separar o trabalho da vida pessoal está entre as preocupações dos profissionais da linha de frente
Para tentar minimizar a possibilidade de infectar familiares, Kintopp destaca os novos comportamentos adotados pelos profissionais da linha de frente. “É importante tomar um banho quando sai do serviço e outro quando chega em casa, deixamos as roupas e calçados usados no dia para fora, porque a família está ali dentro e não tem como saber em que condições você vai entrar em casa, o medo é inevitável”, diz Kintopp.
Sobre separar a vida pessoal e profissional, Cancelli ressalta que “toda pessoa que atua na área da saúde precisa ter empatia e estar sensível às circunstâncias dos pacientes, mas não pode absorver isso para si mesmo”. O médico afirma que “é possível separar as duas coisas, sobretudo, porque trabalhar essa questão representa uma condição importante para o correto exercício das atividades da profissão”.
Conforme Kintopp, os profissionais de saúde “precisam procurar maneiras para separar a realidade enfrentada no trabalho das questões da vida pessoal”, especialmente, no que diz respeito a Covid-19. A enfermeira conta que “embora seja possível separar as duas situações, não é possível esquecer a realidade encontrada nas UTIs”, dessa maneira, mesmo em casa, torna-se difícil evitar pensar sobre o trabalho.
Os profissionais de saúde, sobretudo, os atuantes na linha de frente contra a Covid-19, devem atentar para o próprio bem-estar mental. A respeito disso, Cancelli aponta uma negligência em relação a essa questão. “Isso deve ser trabalhado, mas muitas vezes não acontece, sobretudo, por vontade própria, faz falta uma assistência psicológica disponibilizada pelos serviços de saúde aos trabalhadores que atuam na área”, diz.
Algumas organizações de saúde têm apoio emocional disponível aos funcionários, mas Kintopp ressalta que não são todas. “Seja médico, enfermeiro, técnico de enfermagem ou zelador, a saúde mental fica abalada, muitos hospitais não têm amparo nesse sentido, precisamos buscar suporte psicológico dentro nós mesmos para podermos encarar a nossa realidade”, afirma.
Transtornos mentais ocupacionais podem surgir de maneiras diferentes em cada sujeito
A psicóloga, Bárbara do Carmo Noviski Gonçalves, explica que os transtornos mentais desencadeados pelo trabalho são diversificados, embora ligados por fatores comuns. "Existem vários tipos de desarranjos e os sintomas surgem de diferentes maneiras em cada sujeito, mas o sofrimento mental em torno de atividades laborais representa o fio que une essas questões", ressalta.
A também psicóloga Thais Alves, expõe as causas mais recorrentes de transtornos mentais em trabalhadores. “Em geral, jornadas de trabalho extenuantes somadas às exigências profissionais desmedidas representam questões corriqueiras nesses casos, mas há outros pontos, a falta de reconhecimento na atividade exercida pelo sujeito, por exemplo, também mexe muito com a condição emocional”, esclarece.
Os profissionais da área da saúde, em especial indivíduos que trabalham na linha de frente contra a doença, têm uma predisposição maior ao desenvolvimento de transtornos mentais provocados pelo trabalho. “Há um nível muito alto de risco em que os profissionais da linha de frente estão submetidos, essa periculosidade ligada ao trabalho diário traz problematizações para a saúde mental”, afirma Gonçalves.
Durante a pandemia, mesmo os indivíduos que não fazem parte da linha de frente contra o vírus já estão mais propensos a desenvolver transtornos mentais. “Tenho pacientes com profissões em outras áreas que também apresentam quadros, estamos diante de uma situação sem controle, muitas vezes sequer conseguimos minimizar a questão da transmissão da doença, isso traz implicações”, relata Alves.
No entanto, conforme explica Alves, “por ocuparem uma posição vulnerável, sobretudo, a propagação do vírus, existe uma pressão psicológica mais forte sobre os profissionais da linha de frente”. Nesses casos, a possibilidade de contrair Covid-19 e transmitir para familiares, amigos, colegas de trabalho e pacientes com outros problemas de saúde representa um fator comum para o desenvolvimento de transtornos mentais.
Além disso, dificuldades e impossibilidades de trabalhar com as situações impostas pelo contexto pandêmico também representam fatores. “Muitos profissionais precisam estender a jornada de trabalho, há também a escassez de equipamentos de proteção individual e problemas na infraestrutura dos atendimentos, isso gera sentimentos de desesperança, irritabilidade e solidão”, expõe Alves.
No que diz respeito à identificação das doenças mentais laborais, Alves indica que “embora dependa muito do tipo de doença, os transtornos podem ser observados no comportamento dos sujeitos”. Segundo a psicóloga, alguns indícios podem ser tanto físicos quanto mentais. Dentre esses, estão isolamento, tristeza, perda de apetite, estresse, insônia, tremores, ansiedade, palpitação no coração e fome excessiva.
Quadros depressivos estão no conjunto de transtornos mentais desencadeados pelo trabalho. “A depressão surge por fatores genéticos ou externos, em todo caso, o ambiente de trabalho pode representar um gatilho para a doença, para os profissionais da linha de frente contra a Covid-19, o distanciamento social, a falta de tempo e o luto são exemplos de situações laborais nesse sentido”, destaca Alves.
Segundo a psicóloga Gonçalves, nos profissionais da linha de frente, a ansiedade acontece na mesma proporção que quadros depressivos. Os sintomas desse transtorno apresentam sintomas psíquicos e físicos. “A ansiedade representa um sentimento, mas a partir de um certo ponto, pode passar a ser um transtorno mental, os sintomas mais recorrentes nos indivíduos são insônia, inquietação e irritabilidade”, explica.
Diante das situações encontradas no trabalho, profissionais de saúde podem desenvolver estresse pós-traumático. Segundo Alves,“o transtorno faz parte da ansiedade e surge quando o indivíduo passa por situações com forte impacto psicológico”. Conforme a psicóloga, “os profissionais da linha de frente vivenciam isso com mais frequência e impotentes diante de certas ocorrências passam a desenvolver a doença”.
Outro transtorno é a síndrome de Burnout, transtorno relacionado ao esgotamento causado pelo trabalho. “Trata-se de um desprazer no trabalho, devido às condições enfrentadas pelo sujeito, entre os indícios que antecedem a doença estão cansaço físico e mental, estresse, problemas na alimentação e sono”, ressalta Gonçalves. A doença incide, sobretudo, em profissionais que trabalham sob pressão.
Sobre como organizações podem contribuir para evitar transtornos mentais nos funcionários, Alves destaca que nos hospitais “garantir que os profissionais de saúde tenham um tempo de descanso entre plantões e disponham de alimentação adequada dentro do próprio ambiente de trabalho” são medidas. Além disso, “ter acompanhamento psicológico no ambiente de trabalho é importante para sanar esses casos”.
Ficha Técnica:
Repórter: Robson Soares
Publicação: Alex Marques
Supervisão: Vinicius Biazotti